quinta-feira, 17 de abril de 2008

BREU - Microcontos de GERALDO LIMA


Hiedy de Hassis Corrêa -Murais da Trindade

http://www.dac.ufsc.br/artes_visuais_humanidade_jornal.php



Fatalidade I


Não esperavam que ela gritasse. As mãos de Jorginho estavam trêmulas e, com aquele grito, entraram em pânico.
Torvelinho de braços, pernas, dentes e urros.

Delirium


Não sei se ela está gozando ou morrendo. Esses estertores me alucinam, ateiam fogo na minha carne: sem piedade, vou penetrando cada vez mais. Meus ouvidos, moucos, obliterados pelas areias do nada. O último grito ecoa num deserto banhado de sangue.

O inesperado


Fazia tempo que não nos víamos. Ela tentou ainda correr o ferrolho. Inútil. Com a ponta do sapato impedi que fechasse a porta. Recuou aterrada, desintegrada pelo medo. Entrei. Desliguei a luz e avancei dentro do breu.

Sanctus


Deus não aprovaria isso, essa carne devassa, esse sexo exposto, faminto sempre. Só a morte lhe trará a verdadeira satisfação. Eu curo os doentes, amanso os
loucos, dou descanso aos desenganados. Deus anda comigo pelos caminhos mais turvos. E agora estamos aqui, junto ao seu leito enfermo, o coração repleto de amor e piedade.

Depois daquele ato


O que estava acontecendo não tinha explicação. A mão movera-se por si mesma. Mas quem acreditaria nisso? Louco, louco. O dia cinza, a cidade medonha, a vida absurda. Deus estivera com ele durante algum tempo; agora, as trevas. A mão movera-se sozinha: um gesto cruel, manchado de sangue. Insana, gravara em sua memória grafismos de horror e desordem.

Ali


Sou um filho da puta, não nego. Sou uma falha da natureza. Mas, já que nasci, então faço valer. Remorso? Não, não. Não sei o que é piedade. Matar é o meu orgasmo. Vivo no breu, ainda que haja luz. É, a senhora é uma mulher corajosa, estou admirando. Não tem medo da morte... Aqui, comigo, sem nada que a proteja. O que tanto vasculha em mim? Algum vestígio de Deus?

Macega


A gente avançou no meio do escuro, rumo ao lugar de onde vieram os gritos. Meu pai indo adiante, só coragem, medo nem de Deus nem do diabo. Eu indo bem no meio, dominado pelo terror. Por que estávamos indo até lá? Para a memória carregar pra sempre o charco de sangue, a ruína do corpo?
Meu pai avançava, sem fome de perguntas, senhor do nada.


Ana


Sei que vai se agarrar nas minhas pernas me pedindo pra ficar. Por enquanto tá lá na cozinha, deixando cair panelas, talheres... Quer me fazer ouvir o seu desespero. Não pode viver sem mim. Mas, minha mente já não está mais aqui, que posso fazer? Fecho a porta, ouvindo ainda os seus gemidos de dor. Melhor assim. Teria sido ridículo vê-lo atirando-se aos meus pés.

Breu


O desespero é um abismo: a pessoa age sem fio algum de razão. Naquele momento, bastava ter se acendido uma luzinha na minha mente, para que o mal se esgarçasse. Eu avançava no breu. Veja, o ódio é uma coisa medonha, absurda, cegante. Depois do último estalido, o cheiro de pólvora — meu corpo recuou vazio, uma coisa oca, sem sentido, como se morresse.

Dança ( ou Almodóvar)


Ambos se movendo no círculo de fogo, devorados pelo desejo. Dois estranhos, quase. Ravel inundando a sala, os corpos. Um minuto antes, pensara em fugir; mas agora, presa ao ímã do olhar, deixava-se arrastar até o olho do furacão. Parecia tão manso, outra espécie de homem; súbito, porém, crispou os lábios, e a mão cortou o ar, dilacerando o encanto.


Geraldo Lima
(gera.lima@brturbo.com.br)

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