quinta-feira, 22 de julho de 2010

LÍVIA - José Edson dos Santos



Angelina Jolie de Vernon


A cartografia da casa estava desenhada no inconsciente, nada tinha mudado. Em sua frente uma estante de mogno amarelo: poucos livros, cds, dvds, o aparelho de som e uma pequena televisão. Na parede lateral, as trepadeiras, a samambaia e as plantas sensitivas. O periquito que trouxera de Santarém, roia caroço de açaí em cima do trapézio improvisado sujando os ladrilhos da sala. Bem ao lado da janela que divagava ao infinito azul, mantinha como sortilégio a estatueta de uma índia marajoara e o quadro expressionista de Olivar Cunha. Ouvia agora, baixinho, Ella Fitzgerald, My Melancholy Baby. Lívia dormia tranqüila nas almofadas espalhadas. Acendeu um cigarro transgressor tragando a espiral do instante. Leva a mão esquerda ao queixo imberbe, remetendo à nostalgia do tempo em que dançava com Lívia no clube campestre do Leão do Norte. A orquestra tocava Os Românticos de Cuba perto da piscina onde os casais exercitavam suas coreografias calientes. Lívia sorria enigmática como Ártemis irradiando um luar encantador. Estrelas cadentes riscavam o céu.

Levantou da cadeira minimalista e foi até a cozinha. Abriu a geladeira na sôfrega vontade de alimentar a sua permissividade de fim de semana. Mastigar, engolir ou até mesmo beber o sólido do possível para dar caloria necessária a sua anatomia predadora. Escovou os dentes deixando um pouco do flúor na boca, uma delícia instantânea e fria na língua. De volta à sala instintivamente vislumbra os seios epicuristas colados na blusa branca de meia de Lívia. Ela indolente gata angorá manhosa se vira em cúbito dorsal. Começa a massagear carinhosamente toda extensão de suas costas, palmeando com lascívia a coluna cervical, vértebra por vértebra, até atormentá-la no arrepio da nuca que logo se alucina todo o corpo em frenesi, como no mito da carne fraca, a adorável carne fresca da luxúria. Acaricia com desejo e formigamento sua coxa desprevenida com um beijo úmido que vai deslizando um pouco acima da patela.

Assim se introduz na circunstância plausível, desenhando essa hora alada do corpo. Hipocampos nos olhos notívagos dilatados. Sempre sacou esses lances dos sentidos, dos gestos, da semiótica corporal da paixão como magia espontânea da natureza humana. Tamborilou os dedos na mesa de mosaico que Telma havia dado de presente à sua prima potiguar. Quase sodomizado, retorna em câmera lenta à sala onde Lívia resfolega como a deusa esplendorosa do Kama Sutra. Sente uma vaidade freudiana que condensara dos surrealistas. Com destreza afaga seus cabelos ondulados e belos como se recriasse histórias do inconsciente coletivo, do retorno a mitologia da adolescência com livros de Lewis Carrol, Mário Quintana, Kalil Gibran, Anais Nin e Herman Hesse. Não lembrava mais da barca atracada no porto de Santana nem dos ganidos perto do muro no quintal. O perdigueiro Rique dormia olhando à lua careca. Violinos urdiam harmonias celestiais nos mirabolantes devaneios que se perdiam no bosque Rodrigues Alves das antigas ilusões pueris. Lembranças da boemia no Laguinho das beatas de São Benedito, do rufianismo com as putas do Bar Caboclo nas noites etílicas de Macapá. Do outono passado em Belém, Icoaraci, Ilha do Cutijuba, ouvindo Hermético Sangue Sideral.

Jogou paciência com meticulosidade por algum tempo, pensando deixar para depois o sono de Camofeu exaurido sobre o corpo quedo de Lívia, para sentir bem de leve quando ele chega sem pedir licença, cumplicidade e dengo. Começa chover. Tece o vôo da imaginação povoado de elfos, neiredes e cogumelos alucinógenos. Pink Floyd tocando The Dark Side Of The Moon.

Fica um cenário acrílico de quem sonha com a noite indolente quando retoma seus mergulhos abissais. Quem sabe pela manhã tente retornar à página marcada do Fragmento do Discurso Amoroso. Lívia insistiu tanto para que lesse alguns ensaios de Roland Barthes e a História do Olho do George Bataille. Tudo esvaindo como Op Art do caleidoscópio sobre a mesa de mosaico que Telma esqueceu depois do jantar. Aquele momento assim mesmo. O silêncio se condensa em névoa e vultos distorcidos. Invenção de bocejos intermitentes na cartografia do silêncio da sala. Não podia prever absolutamente nada. Música no ar aprazível.