quarta-feira, 24 de setembro de 2008

4 Contos de Paulo Siqueira



Henri Matisse - Lição de Música
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Paulo Siqueira é natural de Caratinga, Minas Gerais, e mora, em Sobradinho, Brasília. É professor de Português e Literatura na rede pública do GDF. Publicou o livro de poemas O Tao da Coisa (Da Anta Casa Editora, Brasília, 1995), Lâmina (LGE Editora, Brasília, 2004). Tem inéditos: Desardinagem, Livro de Palavras, Corpolivro, Abecedário, A Cabra e a Vassoura (todos de poemas), e um romance chamado Romance. Participa de Todas as Gerações - O Conto Brasiliense Contemporâneo (Organizado por Ronaldo Cagiano. Editora LGE, Brasília, 2006).“Acho que a literatura, como disse Décio Pignatari, é um modo de vida, não um meio; tão bom contar história é o uso da função poética, a linguagem transtornada pelo poético, a desconfiguração da língua, intenção/não intenção, alegria e dor”.

RAIMUNDO

Lascado, jogado no ermo, sem dar conta de como viera parar ali, corpo murcho, coração ressecado, achava que precisava de Deus, um deus que explicasse o porquê de ele estar naquela danação. Construir um destino, uma história. Já umas não-sei-quantas facadas no bucho de fi-duma-égua de todo jeito, quantos modos de se arranjar entre o norte do Goiás e o Maranhão, e agora atirado no oco, numa Brasília erma em que só um corno desgraçado ia gostar de morar, querendo dizer para si mesmo que não foi ele quem matou, não foi ele quem inventou tanta morte.

LIVROS

Só ela, a organizar os volumes, limpá-los, registrar, catalogar; a pobreza da pequena escola, a falta de títulos interessantes, tudo emoldurando os gestos da mulher, isolada, traçada ali, sem dizer palavras, sem reclamar com palavras; seu corpo, seu todo era clamor; uma caixa grande de papelão, uma lata de thinner, uma flanela; não regia mais os movimentos nem se preocupava com a qualidade de serviço. Parou de passar álcool nas capas, começou a rasgar páginas, embolá-las e jogar dentro da caixa, que se encheu; inclinou-a um pouco e sem muita dificuldade foi entrando, aninhando-se, esticando o braço para apanhar o thinner, derramando-o sobre o papel, sobre o corpo, empapando o vestido, até esvaziar o frasco; depois o isqueiro.

SONHO

Céu brumoso e a montanha azul, paisagem-painel de Kurosawa, pano bordado imenso, flores árvores pássaros de tecido-céu da cor depois de grande chuva, tempo-manto-gabbeh se dizendo qual tudo desabrochasse por si, Sebastião, o tio andando comigo dentro da paisagem, falando do amor que a morte levara seu muito novo, toda flor folha céu muito exato-claro-sonoros – como se deus presenteasse o diaespaço, qual Modigliani, Matisse, digo Cézanne ou Gauguin.

LÂMINA

O gosto da lâmina banhada no sangue,um reluzido pouco na região aonde o vermelho não chegava,um vermelho querendo ficar preto, vacilando, quase seco, o paladar da faca repetindo-se nos dentes, amargo raro, desnatural, revirando o estômago; a treva nas vísceras, sol de culpas,céu seco, silêncio, o eco do silêncio, o corpo mastigado pela noite e cuspido no dia,igual o de um cão sem nada;despir-se daquele manto – como? nuvens estrelas galáxias manchadas pelo sangue endurecido, sangue impensado, cor sem termo,o sem-nome, corpo pensado pela faca, o gosto do osso que recobria o cabo habitando sua boca, a imagem da lâmina mordia pelo ventre do outro valsando no palato, esfaqueando-o, o morto carregando-o em um andor, flores de todas as formas, matizes de dor.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Feminismo Pós-Moderno - Eleanor Heartney



Toda violência é a ilustração do estereótipo patético...Barbara Kruger
bitaites.org/livros/a-ironia-das-palavras-est...

As feministas pós-modernas, adotando as designações impostas às mulheres pela cultura patriarcal – mulheres como natureza, mulher como corpo, mulher como emoções – insistiam que a arte não devia tentar oferecer imagens positivas da experiência da mulher, já que isso, inevitavelmente, acabaria servindo a uma ideologia ou outra. Acreditavam que a sua tarefa era revelar com as nossas idéias de ser mulher e feminilidade são construídas socialmente. Perseguiam a idéia de feminilidade como uma máscara – um conjunto de poses adotadas por mulheres a fim de se conformarem às expectativas da sociedade sobre o ser mulher. Defendiam que não existe uma essência feminina – a mulher seria um conjunto internalizado de representações. Isso se conformava, de maneira geral, à visão pós-moderna da realidade. Como formulou a teórica feminista Kate Linker, “na medida que a realidade só poder se conhecida através das formas que a articulam, não existe nenhuma realidade fora da representação”.
Para compreender o processo pelo qual nossas visões de feminilidade são produzidas, as teóricas feministas voltaram-se para a psicanálise. Sentiram-se particularmente atraídas pelos escritos do psicanalista francês Jacques Lacan, que conferiu à teorias freudianas do desenvolvimento infantil um movimento pós-estrutural. Segundo Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ele reescreveu O Complexo de Édipo em termos de relações de signos e significantes. O pai, que interrompe a identificação total do bebê com a mãe, torna-se, em Lacan, o Nome-do-Pai ou a Lei. É o representante da ordem simbólica, o mundo da linguagem em que a criança deve entrar para se tornar um membro da sociedade. Mas como a linguagem é sempre uma questão de significados aprovados e significantes desconectados de seus signos, a criança ao adquirir a linguagem perde a noção da totalidade que desfrutava em seu estado pré-edipiano. Portanto, os humanos são eternamente assediados pela noção da “falta”, e anseiam pela união rompida com o que a criança imaginou ser sua todo-poderosa mãe. Para Lacan, essa “falta” é a chave da psicologia. Ela inicia uma busca de substitutos que possam ocupar o lugar da chamada “mãe fálica perdida” (noção aparentemente contraditória que reflete a transformação lacaniana do falo para o significante de poder). Esses substitutos, conhecidos como fetiches, são objetos ou imagens (ou, em termos pós-estruturalistas, significantes isolados) em que os indivíduos carentes se fixam para abrandar um desejo impossível.
Não se pode deixar de perceber que tudo isso enfoca a formação do desejo masculino. É aí que entra a teoria feminista. Em um ensaio de grande repercussão e influência intitulado “Cinema Narrativo e Prazer Visual”, a teórica Laura Mulvey aplica a noção de fetiche à teoria do cinema. Ela argumenta que o cinema de Hollywood é estruturado em torno do olhar masculino. Supõe a existência de um espectador homem que transforma as mulheres em fetiches, ou da temida, mas desejada, “mãe fálica perdida” com a intervenção do pai ou da mulher castrada. Essa última é um artefato simbólico, cujo estado reduzido lembra ao homem a ameaça que a castração faz ao seu próprio poder. Portanto, ela é a figura que ele tem de subjugar para recuperar o domínio sobre o mundo.
Em seu extremo, o feminismo pós-moderno assumiu um tom puritano. As feministas do First Wave Feminists, que tinham celebrado a sexualidade feminina e expostos publicamente o seu próprio corpo nu, quase sempre voluptuosos, foram criticadas por fazerem o jogo das estruturas de poder patriarcal. As feministas pós-modernas, na tentativa de destruir o prazer estético que satisfazia os homens as custas das mulheres, muitas vezes perseguiram uma forma de iconoclastia, escolhendo trabalhar com as imagens de mulheres na mídia de uma maneira que reduzia o seu poder de sedução. Optaram por evitar representar o corpo feminino completamente baseadas na teoria de que qualquer forma de representação perpetua a objetificação da mulher.
Umas das artistas mais influentes nessa linha foi Bárbara Kruger. Como diretora de arte na década de 70, Kruger elaborou layouts para as revistas femininas da Conde Nast. Desenvolveu habilidades gráficas que empregou em seu trabalho de arte subseqüente, e uma noção que como as revistas manipulam seus leitores por meio das imagens. Como ela observou, “é dever da revista tornar você a imagem que ela faz da própria perfeição”.
Em sua arte, Kruger justapôs textos e descobriu ou criou imagens fotográficas de uma maneira que subverteu as convenções da mídia. Fragmentadas, removidas de seu contexto original e reproduzidas em preto e branco, as imagens estavam abertas a novas interpretações. Essa foram supridas pelos textos rigorosos lançadas como bandeiras de publicidade pelas imagens. Esses textos assumiram o tom autoritário da publicidade convencional, mas Kruger sutilmente manipulou a voz, invertendo a ordem em que o macho dominante fala como uma fêmea submissa. Neles, a voz é de uma mulher se dirigindo a um homem sobre as condições de suas desigualdades, mencionando que Seu olhar bate no meu ou anunciando Nós não seremos mais vistas nem ouvidas. Na última obra, Kruger combinou cada palavra com a sua tradução na linguagem dos mudos, sugerindo que, apesar de sua supressão, as mulheres encontrarão uma linguagem com que se comunicar. (Trecho extraído do livro Pós-Modernismo, de Eleanor Heartney. Ediotra Cosac & Naify. São Paulo, 2002.)