quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008


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DIA DO AVESSO

No bar singular toca um tema comum aos ouvidos populares. A Dona do Bar lê uma revista de fofoca, bebendo coca-cola no canudinho. Dois namorados bebem em silêncio na lateral, conversando em cena muda. Entra o Cliente com aspecto sombrio e vacilante. Traz apertando na mão um pequeno envelope, que guardará depois no bolso da calça.

Cliente – Ó dona, me serve uma pinga daquelas que ressuscita até defunto...

Dona do Bar – Tem 51, Velho Barreiro e Chora Rita.

Cliente – Castiga na Chora Rita ( a Dona do Bar serve a pinga e o Cliente bebe em um gole só ). Repete a dose no capricho. Hoje eu quero afogar a minha mágoa.

Dona do Bar ( servindo outra dose ) – Tá desgostoso da vida, moço? Tem vez que a bebida alivia mas às vezes ela complica mais ainda...

Cliente ( bebendo em um só gole ) – É isso mesmo dona, a vida é uma sinuca de bico. Tem dia que nada que a gente faz dá certo.

Dona do Bar - Não seja pessimista, moço ( servindo outra dose ). Tome outra por conta da casa. Um aperitivo para abrir o apetite.Temos torresminho com farofa, quibe com ovo e lingüiça de tira-gosto. O senhor vai querer?

Cliente – Pinga é bom com lingüiça. Traga uma pimenta também. ( A dona do Bar sai para atender o pedido enquanto o Cliente tira o envelope do bolso e diluí na pinga. Apanha o copo, olha e fala consigo mesmo ). Adeus mundo cruel e infame. Um grande bundão tu vai perder! ( Fica em dúvida. Coloca o copo no balcão e fica contemplando com tristeza profunda. A Dona do Bar aparece com o tira-gosto. Entra o Malandro com um cigarro acesso na boca e se dirige a eles com insolência )

Malandro – Hoje não vi minha nêga e tô com a macaca. Tô doido para apagar o filho duma égua que se meter no meu caminho. Quero ver se nesse boteco fajuto tem um macho que vai querer me encarar. Tô pagando pra ver! ( Pega o copo do Cliente )

Dona do Bar – Deixa o moço beber a pinga dele em paz, Tripa Seca...

Malandro – Já quem manda aqui no pedaço é o Tripa Seca, vou tomar a pinga desse otário de graça. Se chiar eu como na faca ( Apaga o cigarro violentamente no balcão e bebe a pinga em um gole só). Se olhar feio dou um tiro no saco.

Cliente – Pô cara, hoje em dia não se pode nem morrer sossegado...

Dona do Bar – Deixa de besteira, moço. Que conversa é essa de morrer sossegado?

Malandro – Além de otário, o borra bosta quer virar defunto porquê? ( Começa a se coçar e se contorcer disfarsadamente )

Cliente ( meio desapontado ) – Hoje acordei atrasado. O chuveiro queimou. Peguei o ônibus cheio e um engarrafamento de lascar para chegar mais atrasado ainda no trabalho. Meu chefe me olhou com cara de desprezo e disse que eu estava no olho da rua, que para o meu lugar já tinha um monte de puxa-saco. Voltei para casa mais cedo e quando abro a porta do quarto encontro a minha mulher com o Robertão, aquele desgraçado que dizia ser meu amigo. Corno desempregado e sem nenhuma arma para acabar comigo, passei no Armazém Rural e comprei veneno de rato, com a certeza que a vida para mim tinha acabado. Cheguei aqui nesse bar, misturei o veneno com a última pinga que ia beber, certo que daria fim nessa mediocridade toda e para meu desespero aparece um veado metido a valente, dando uma de arruaceiro para beber minha pinga com veneno de rato. Tem dó. Tem dia que nada dá certo...

Dona do Bar – Valei-me, São Expedito, não quero complicação com a polícia...

Malandro ( Tremendo com a mão na barriga ) O quê? Veneno de rato na pinga? Ai meu estômago... tá começando a queimar. Tô no sal...( começa a cair em câmara lenta )

Dona do Bar – Tripa Seca, seu infeliz, porque não arranjaste outro lugar para morrer?

Cliente – Tem dia que nada dá certo. Hoje foi o Tripa Seca que se ferrou. Quem sabe o Senhor lá em cima está me dando outra chance ( Vai saindo de cena enquanto a Dona do Bar e o casal de namorados jogam um lençol sobre o corpo de Tripa Seca. Toca um Bezerra da Silva. A luz vai enfraquecendo ).
José Edson dos Santos
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"... Por que os povos amam seus poetas? É por que os povos precisam disso, por que os poetas dizem uma coisa que as pessoas precisam que seja dita. O poeta não é um ser de luxo, ele não é uma excrescência ornamental da sociedade, ele é uma necessidade orgânica de uma sociedade, a sociedade precisa daquilo, daquela loucura pra respirar. É através da loucura dos poetas, através da ruptura que eles representam que a sociedade respira...". Paulo Leminski

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