terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O Amor é um Rock - Tom Zé

O Champanhe - Adrino Aragão


Anton Tchekhov




Adrino Aragão entre os escritores Donaldo Melo e Paulo José Cunha, na comemoração dos dez anos das Noites Culturais T-Bone, em 13/03/08.
Adrino Aragão de Freitas nasceu em Manaus, no dia 6 de outubro de 1936. Formado em Direito, trabalhou no Banco do Brasil, instituição pela qual se aposentou. Já ganhou prêmios literários e tem trabalhos incluídos em diversas antologias. Reside, atualmente, em Brasília. Obra de ficção: Roteiro dos vivos (Manaus, 1972), Inquietação de um feto (Manaus, 1976), As Três faces da esfinge (Natal, 1985). A Verdadeira festa no céu: ficção infanto-juvenil (Brasília, 1991). Tigre no espelho. Da anta Casa Editora, Brasília,1993. Os Filhos da Esfinge. Da Anta Casa Editora, Brasília, 1998. A Cabeça do Peregrino Cortada pelos Filhos do Cão. Valer Editora, Manaus, 2005. Conto, Não-Conto & Outras Inquietações, Da Anta Casa Editora, Brasília, 2006. O Champanhe. LGE Editora, Brasília, 2007. adrinoaragao@bol.com.br

Escritório de Escritor

Prateleiras abarrotadas de livros. Num pequeno espaço da parede, reproduções de Guernica (Picasso) e Comedores de Batatas (Van Gogh), e algumas molduras com fotos do escritor em lançamentos e palestras em escolas. Sobre a mesa, computador, impressora, resma de papel, caderno e o telefone dividem o mesmo espaço. Mais livros, revistas, cadernos e jornais se amontoam no chão, formam labirintos de difícil acesso. A janela, aberta para o antigo terreno baldio ao lado, agora ocupado por enormes edifícios de apartamentos, não permite mais que ele veja o céu límpido e as andorinhas em revoadas festejando o verão.

Mas nada disso preocupa nem atrapalha o escritor. Escrever é ato solitário, exige concentração e solidão. A vida toda, ele escreveu à máquina. Mas agora foi obrigado a trocar a maquina de escrever pelo computador, porque as editoras exigem que o texto lhes seja remetido em disquete, Aí começou o problema, agravado mais ainda quando , entre uma pausa e outra mais demorada, surge na tela o homenzinho agitado, consulta o relógio de algibeira, bate nervoso o pé, uma, duas, três vezes, pergunta em seguida: "Deseja ajuda?".

O escritor põe levemente os dedos sobre o teclado, olha a tela do computador. O homenzinho continua lá, anda de um lado para o outro, mãos e braços vltados para trás. O escritor sorri e diz: "Vamos, companheiro. Mas, desta vez, acalme-se, deixe-me escrever sossegado".

A sala é ampla. Na parede, o quadro com o rosto de Anton Tchekhov. Próximos à janela, o sofá e duas poltronas e uma penteadeira. Sobre a mesa de jantar coberta com toalha de linho branco, os pratos de porcelana, talheres de prata e taças de cristal, todos arrumados para três pessoas; no centro, duas novas edições de A gaivota e O jardim das cerejeiras. Na banqueta, o balde de gelo e a garrafa de champanhe sobre a bandeja de prata.

Boris, alto, forte, cabelo grisalhos, parece ser o mais velho, levanta-se e, com a taça do champanhe na mão, propõe o brinde.

Andrei, estatura mediana, cabelos castanhos, barba e bigode bem cuidados, oferece a taça do champanhe à exuberante Maria, cabelos prateados, olhos cinza-esverdeados, vestida com elegância.

- À memória de Anton Tchekhov, o maior escritor do mundo!

Boris, o pensamento mergulhado no passado, lembra o famoso escritor, as peças de teatro que ele escreveu e nas quais atuou Boris; já se passaram dez anos do falecimento, mas Anton Tchekhov permanece vivo não apenas na memória de cada um dos que ali se encontram reunidos, mas nos livros e nas peças que deixou. Olhando agora os livros no centro da mesa, a emoção é tão forte que Boris parece vê-lo presente, em carne e osso, como se vivo estivesse.

Mãos apoiando o queixo, Andrei sussurava o que dissera Anton Tchekhov: "Odiamos o passado, odiamos o presente e tememos o futuro. Esquecemos, no entanto, que o futuro que tememos se transforma no presente que detestamos e no passado que adoramos." Anton Tchekhov sabia das coisas, mais do que qualquer outro; mostrou isso sutilmente em cada obra que escreveu. Como no conto em que relata a história do esquisito professor de grego que, mesmo com o céu claro, o tempo bom, saia de galocha, guarda-chuva e sobretudo forrado de algodão. Se não bastasse, ele vivia prisioneiro numa redoma, para defender o culto à língua de Homero e ao passado que amava, de qualquer interferência da realidade que o mantinha em sobressalto permanente.

Maria encaracolava com os dedos a mecha de cabelos, perdia-se em devaneios. Ah, meu queridoAnton, não há um dia que eu não me pergunte por que você escolheu Olga e a não a mim, a sua "linda princesa dos contos de fada", às vezes me ponho a dizer alto, na tentativa de convencer a mim mesma, como Daniacha, a personagem em O cerejal: "Ele me ama, ele me ama tanto!". Chego a sentir arrepios.

Boris rompe o silêncio: estamos os três reunidos para homenagear Anton Tchekhov. Sem discursos, sem formalismos. Anton tinha horror a essas coisas. Gostava de simplicidade; aliás, simplicidade e concisão eis os dois pontos fundamentais da estética de vida e de literatura de Anton Tchekhov. Preciso ser conciso, explico-me. Cada um de nós tem boas lembranças dele. Sugiro que cada um conte alguma coisa sobre ele, mesmo que seja trivial, alguma confidência, por que não? Quem começa? Você? Ou você?

Eu? Por que eu? (Fragmento da novela O Champanhe, de Adrino Aragão. LGE Editora, Brasília, 2007)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Poesia sutil de Priscila Figueiredo



http://www.smarcos.br/newsPublisher/viewNews.php?codNews=517 -


http://blog.comunidades.net/galeria/srmoranguita8477...

Priscila Figueiredo fez Letras na USP e mestrado na área de literatura brasileira, sobre o livro de Mário de Andrade Amar, verbo intransitivo. A dissertação veio a ser publicada, em 2001, pela editora Nankin. Escreveu vários artigos para revistas e jornais, como a Folha de S. Paulo, onde foi, por quatro anos, consultora de português. Foi co-editora da revista Rodapé, voltada para a crítica de literatura brasileira contemporânea. Participou do Cálamo, grupo surgido em fins de 1990 a partir das oficinas literárias da Casa Mário de Andrade, integrado por pessoas de diferentes formações interessadas em produzir e discutir literatura. Desde 1998 trabalha na TV Cultura como assessora em língua e literatura, produzindo análises de poemas e canções para a seção "ponto.compoesia", do site de educação, e colaborando na pauta e redação do programa "Nossa Língua Portuguesa". Atualmente faz doutorado na USP sobre Macunaíma.
“Sutil, inteligente, reflexiva e de uma delicadeza pontiaguda” é a definição da poesia de Priscila Figueiredo para Reynaldo Damazio, da Unimarco Editora, para quem a autora apresenta uma visão interessante da literatura. Mas é a ironia e o tom satírico que marcam a atual fase de Priscila, que escreve poemas há 20 anos. “Já passei pela fase de poemas místicos, líricos, até atingir um ponto mais consistente, atualmente, com uma fase satírica”, disse ela.
“ As Anãs São Sempre Pobres...”
As anãs são sempre pobres
é incrível
minha mãe é cobradora
de ônibus e anã
ela fica sentada ninguém nota
com catraca eletrônica
a gente está perdida
no olho da rua
a gente vai comer o diabo
todo mundo vai saber
que minha mãe é anã
e pobre
a mão invisível só atrapalha
o único emprego que esconde minha mãe
é o de cobrador ela fica sentada
ninguém vê ou tem tontura
porque suas mãos grandes e rápidas
pegam o dinheiro e o contam e o recusam
quando ela não pode dar o troco
são mãos que não trazem perigo
esse trabalho era mesmo muito bom
porque a gente só podia ver as mãos dela
agora essas mãos andam em companhia do corpo
e vão lhe dizer: “Olhem com quem andam!”

O corpo da minha mãe não é estável

Tatu-bolinha

Você se eriça
Você se eriça todo
mas nem por isso
toma jeito
Assim é que ao preferir se dobrar
não dá margem para mim
não tenho simplesmente por onde
pegar as perninhas
alisar o seu oco
ou o seu
preenchimento – pense bem
isso é desesperador
Mas não pense
fique esférico
estratégia excelente para encolher
minha palavra desenvolvida

Luta de Classe I

Jandira insiste com a creolina
que a tudo corrói, limpa e higieniza
Jandira, até minhas tripas?
Depois pego Jandira na despesa
devorando mexericas quase podres
arrastando no chão sujo a bunda e o avental
praticamente novo

Jandira
na geladeira
o melão partido
a alface crestada
o molho branco destampado?
Jandira diabólica
trepa na minha vista
arreganha os dentinhos
criada surda curda fula
Jandira enfia no meu cu
o avental a creolina as cascas
eu engulo mais essa
fedentina de mexerica porcaria
dessa empregada
mole e revoltadinha
que empesteia de mexerica
toda a minha casa
toda a minha cozinha

Amor Imposível

Andréia é louca por melancia, manga e goiaba
mas Andréia tem grande preguiça
de comer melancia com tantas sementes!
Para Andréia, não há graça
em comer manga com faca
(e comer manga sem faca
é mesmo uma desgraça)
Andréia também não come goiaba
porque diz ela, são tantos os bichos...

Apesar disso
Andréia é louca por melancia, manga e goiaba

Canto da Sereia

Meu querido
este umbigo que vês
é o seu tanto soturno e pequenino
mas é odre de almíscar
celeiro de tigres
terra da Úmbria
é ainda
cantil de poeira
boca sem visgo
minha cicatriz mais triste

possa tua língua
escovar bem fundo
esse poço sem limo
este ponto de fuga
esta galinha morta
encruzilhada suja
em que se enruga
toda a Terra, toda a carne:

pelo ralo

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Poemas de Robert Frost




A Estrada Que Não Tomei

Duas estradas num bosque amarelo divergem:

triste por não poder seguir as duas

sendo um só viajante, muito tempo parei

olhando uma delas, até onde podia alcançar,

pois atrás das moitas ela dobrava.


Então tomei a outra que me pareceu de igual beleza,

uma vantagem talvez oferecendo

por ser cheia de grama, querendo ser pisada:

embora neste ponto o estado fôsse o mesmo

e uma, como a outra, tivesse sido usada.

E naquela manhã todas as duas tinham

folhas ainda não escurecidas pelos passos.

Ora! Guardei a primeira para um outro dia!

Mas sabendo como uma estrada leva a outra,

duvidei poder um dia voltar!


Contarei esta estória suspirando,

daqui a séculos e séculos em algum outro lugar:

duas estradas, num bosque, divergiam

e eu tomei a que era menos frequentada

e foi isso a razão de toda a diferença!


Nossa Posse do Planeta

Pedimos chuva. Não houve relâmpago nem trovão.

Não houve um vendaval. Não houve incompreensão

nem nos deram mais do que pediramos

e só por havermos a chuva pedido

não nos castigaram com enchentes e calamidades

ganhamos, isso sim, um bom aguaceiro.

Que pudemos então p'ras sementes usar.

E depois veio outro, e depois outro ainda,

para o solo esponjoso bem fértil tornar.

Podemos duvidar da justa proporção entre o bem e o mau.

Na natureza há muito contra nós, mas há o que esquecemos:

se tomarmos a natureza como é desde o início dos tempos

incluindo o ser humano, na paz e na guerra,

veremos haver algo bom a favor dos homens,

talvez uma fração de um por cento pelo menos;

ou o número dos vivos não viria crescendo sempre

nem nossa posse do planeta teria aumentado tanto.

Robert Lee Frost (San Francisco, Califórnia, 26 de março de 1874 - 29 de janeiro de 1963) foi um dos mais importantes poetas dos Estados Unidos do século XX. Frost recebeu quatro prêmios Pulitzer. A produção literária de Frost é variada e abundante. Sua poesia inclui sonetos, poemas em forma de diálogo, poemas curtos, poemas longos. Escreveu três peças teatrais (A Way Out, In an Art Factory e The Guardeen). São numerosíssimos os registros de suas conferências. A correspondência, os ensaios e as histórias merecem o mesmo comentário. Frost tem a capacidade de dar um tratamento simples e ao mesmo tempo profundo a temas elementares (fogo, gelo, natureza), tirando verdadeiras "lições de moral" de suas observações do mundo natural (lições nem sempre otimistas, como se pode notar em Nothing Gold Can Stay). Tal traço, aliado à modernidade de sua linguagem (Frost era um defensor do uso da linguagem vernácula nas obras literárias), fez com que Frost jamais deixasse de figurar entre os escritores prediletos dos norte-americanos, ao lado de nomes como Whitman, Emerson e Thoreau. Seu poema The Road Not Taken é peça obrigatória em qualquer antologia poética de língua inglesa. Prova adicional de sua popularidade são as várias referências em filmes como Sociedade dos Poetas Mortos e Daunbailó.
(pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Frost)

sábado, 13 de dezembro de 2008

Nefelibata / A Sopa e as Nuvens


http://tapostado.wordpress.com/



papagaio.wordpress.com


Sonheteiro nefelibata na varanda
contemplo nuvens do impalpável

Flibusteiro da fragata argonauta
vejo longarina vida singrando

Timoneiro da tormenta solerte
fito porto da morte de soslaio

Sinaleiro Juno do arrebol ausente
olho mundo como nuvem de maio

A Sopa e as Nuvens ( Charles Baudelaire )

A louca de minha amada me dava de jantar, e pela janela aberta da sala de refeições eu contemplava as movediças construções que Deus faz com as nuvens, as maravilhosas construções do impalpável. e dizia, comigo, através da minha contemplação: "Todas estas fantasmagorias são quase tão belas quanto os olhos de minha amada, a pequena louca monstruosa de olhos verdes."

De súbito senti um violento murro nas costas e ouvi uma voz rouca e encantadora, uma voz histérica, e como enrouquecida pela aguardente, a voz de minha querida bem-amada, que me dizia:

- Trata de tomar a sua sopa, seu maluco, mercador de nuvens!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Teatro de Animação - Ana Maria Amaral



(Ana Maria Amaral é professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e encenadora de formas animadas.)

Teatro de Animação trata do inanimado, por isso poderia ser também chamado de teatro inanimado. O que é o Teatro do Inanimado?

Teatro do Inanimado é um teatro onde o foco de atenção é dirigido para um objeto inanimado e não para o ser vivo/ator.

Objeto é todo e qualquer matéria inerte. Em cena representa o homem, idéias abstratas, conceitos.

Inanimado é tudo aquilo que convive com o homem, mas é destituído de voliação e de movimento racional. Ao receber a energia do ator, através de movimentos, cria-se na matéria a ilusão de vida, e, aparentemente, passa-se a ter a impressão de ter ela adquirido vontade própria, raciocínio.

Todo ser vivo tem um centro pensante e um centro de equilíbrio. A qualquer objeto pode-se transferir vida, desde que num ponto qualquer de sua estrutura material, se localize um seu suposto centro pensante. O objeto assim simula pensar, sentir, querer, deduzir.

Todo corpo tem um ponto de equilíbrio. O corpo humano tem eixo mental e físico (cérebro e espinha dorsal) e tem membros (pernas, mãos, braços) através dos quais age e inter-age. Ao receber energia do ator, o objeto material também recebe um eixo central e membros, ou extensões. com os quais atua e se comunica.

Animar um objeto é deixar-se refletir nele, disse Mássimo Schuster. Boneco/objeto animado não é senão energia refletida do ator-manipulador. O que confere vida emotiva e racional ao objeto animado, durante o ato teatral, é a presença direta e atuante do ator sobre o objeto.

Existe uma distinção entre o personagem apresentado pelo ator-vivo e o personagem-boneco.

O ator confunde a sua própria imagem com a imagem do personagem. O ator encarna o personagem. O ator é visto. Já enquanto ator-manipulador, a sua imagem não é vista. Ou, quando é vista, quando na cena o ator-manipulador está visível, sua imagem deve ser uma imagem neutra, nunca a imagem do personagem propriamente. No Teatro de Animação a imagem do personagem é sempre diferente da imagem do ator-manipulador. Todo objeto animado, quando bem manipulado, neutraliza a presença do ator.

Como disse Émile Copferman, o ator é. O ator existe, tem vida. Em cena, representa ser outro, mas conserva sempre a memória de si, e quase sempre trai o personagem, pois, ele não é o personagem. Já o boneco não é, isto é, não existe, não tem vida própria, mas é o personagem, o tempo todo.

Para Oskar Zich existem duas maneiras de se perceber um personagem animado. Ou melhor, existem dois tipos de Teatro de Animação: um teatro em que os personagens são vistos apenas como objetos, isto é, sem vida; e um teatro em que os personagens são vistos como dotados de vida. No primeiro caso, predominando a percepção de sua materialidade, não os levamos a sério. Ao tentarem imitar a realidade teornam-se grotescos. Despertam o riso. Já no segundo caso, a percepção de vida é mais importante do que a percepção das características materiais do objeto ou do boneco animado. Tornam-se assim enigmáticos, são mistério, estranheza. Vão além da realidade. Despertam o poético.

Também Meyerhold via dois tipos de teatro de bonecos: um teatro em que o diretor pretende que os seus bonecos se assemelhem o mais possível ao homem, e um teatro em que o diretor não pretende reproduzir a realidade. Na tentativa de copiar o humano, os bonecos ficam apenas cômicos. Meyerhold observa ainda que, se o que se pretende é reproduzir a realidade, por que usar bonecos e não atores vivos de uma vez? Deve-se usar bonecos apenas quando o que se pretende é apresentar peculiaridades do boneco enquanto boneco mesmo, salientando seus movimentos, sua forma, explorando suas metáforas, sem distorcer sua natureza.

Nestas considerações sobre o teatro de bonecos, Meyerhold faz um paralelo com o teatro de ator. Assim como não se deve fazer com que o boneco expresse plenamente suas características de não-realidade ou fantasia, assim também o ator não deve copiar a realidade como tal, mas deve criar, dentro da linguagem teatral, algo além dessa realidade usando para isso uma linguagem não naturalista. Teatro não é vida. E quanto menos real mais próximo da essência que se pretende representar.

Existem portanto dois tipos de Teatro de Animação. Um teatro cômico, caricato, e um teatro poético, mais na esfera de idéias simbólicas.

O importante, ao se tentar dar vida ao inanimado, é ressaltar as peculiaridades intrínsicas da materialidade com que todo objeto é feito.

Teatro é esse encontro entre realidade e irrealidade. Irrealidade se intui. Realidade é o que se vê em cena, é tudo que ali está, e o que se vê e está em cena são elementos materiais. A matéria em si, em toda a sua realidade, ao mesmo tempo que toca o nosso consciente racional, provoca apelos ao nosso inconsciente e desperta em nós outros níveis, anímicos. Em cena é magia. Animar o inanimado é traspor um limiar.
(Extraído do Livro Teatro de Animação, de Ana Maria Amaral. Ateliê Editorial. SP, 1997)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Bachelard e Monet: do Olhar à reflexão - José Américo Pessanha



As Ninféias, 1916 - Claude Monet
http://images.google.com.br/image


José Américo Pessanha - Foi professor de Filosofia da UFRJ. Publicou: "Bachelard e Monet: do olhar à reflexão", no Caderno Cinza do Rio Arte e "Itinerário da Paixão" (Sobre Clarice Lispector) e "Camus: o absurdo na paisagem", edição Cadernos Brasileiros.

Investigador das duas vertentes da imaginação – a imaginação científica e a imaginação artística -, Gaston Bachelard (1884-1962) reavalia o papel do olhar na construção do imaginário. Denuncia o ocularismo da cultura ocidental e mostra que o vocabulário básico da ciência e da filosofia está marcado pela hegemonia da visão. O “novo espírito científico” exige, porém, o reexame do pressuposto ocularista, que tendera a fazer da realidade um espetáculo a ser contemplado: o fenômeno não é mais propriamente “descoberto”, antes “inventado”, subentendendo uma fenomenotécnica, que revaloriza a noção de manualidade.

Bachelard mostra a existência de uma imaginação material ao lado da imaginação formal, baseada na visão. A imaginação material resulta de nossa inserção enquanto corpo no corpo do mundo e alimenta um imaginário que trasparece sobretudo nos devaneios, na arte, na filosofia. Esse imaginário resgata o valor da “mão que sonha” e produz realidades artísticas, quer movida pela vontade de criar que a leva a enfrentar a resistência do mundo (na escultura), quer gerando novas realidades por meios “alqímicos” (na gravura, na pintura).

Claude Monet (1840-1926) é interpretado por Bachelard. Monet – “é apenas um olho, mas que olho!”, exclama Cézanne – é talvez o maior dos impressionistas. Pinta paisagens, tentando captar o percurso do tempo pela captação da luz de cada instante. E pinta reflexos de paisagens em águas tranqüilas ou encrespadas. Parece passar do instante do olhar da reflexão, ali onde arte e filosofia se aproximam na fronteira entre o fugaz e o permanente. ( Texto extraído de O Olhar. Funarte/Núcleo de Estudos e Pesquisas, 1988 )

sábado, 22 de novembro de 2008

White Album - The Beatles




http://www.beatleshp.com
Eleito um dos melhores discos já gravados na história, o White Album, dos Beatles, completa agora em novembro quatro décadas de existência. Lançado em 22 de novembro de 1968, é o nono álbum oficial dos FabFour e o nono mais vendido de todos os tempos nos Estados Unidos.


The Beatles, ou White Album, é o famoso Álbum Branco, lançado em Novembro de 1968, que entrou para o Guiness Book como o disco que mais vendeu nos EUA em uma semana (pouco mais de 2.000.000 de cópias), façanha tamanha só para os Beatles. Pela 1ª vez crítica e público aceitaram que as músicas eram individuais, sendo que isso já era notado desde os primeiros trabalhos da banda. Um fato curioso é que as baterias de 3 músicas deste disco são tocadas por Paul. São elas Back In The Urss, Dear Prudence e Why Don't We Do It In The Road, em que Paul tocou todos os instrumentos - isso aconteceu porque o Ringo tinha resolvido sair da banda por achar que não estava tocando bem, mas depois de insistentes telefonemas dos outros 3 ele resolveu voltar ao conjunto. Paul McCartney estava no auge da sua fase folk rock nos Beatles, ele fez músicas como Rocky Raccoon, Blackbird, Mother Nature's Son, e I Will, mas McCartney é McCartney, ele também surpreende com as pauleiras como Back In The USSR, hit digno da coletânea azul, Birthday, e a canção que muitos consideram como o primeiro Heavy Metal da história: Helter Skelter, uma porrada na orelha com aquele vocal rouco que só o Paul consegue fazer. Mas não poderiam faltar as baladas: Martha My Dear, com uma bela execução de piano a cargo de Paul, Ob-La-Di,Ob-La-Da, muito bacana e divertida, além de Honey Pie (lembrando aqueles jazz dos anos 40).
George Harrison pela 1ª vez conseguiu emplacar um hit nas paradas, com a belíssima While My Guitar Gently Weeps - uma das melhores músicas de George e dos Beatles, que conta conta com um belíssimo solo de guitarra a cargo do guitarrista Eric Clapton (ele fez a guitarra chorar). Em Piggies mais uma vez George atacou de político e também conta com um belíssimo solo de cravo e o clássico final com George dizendo ONE MORE TIME. Savoy Truffle é uma música mais soul rock com direito a solo de sax e um belo solo de guitarra no estilo George; uma curiosidade é que essa música foi uma homenagem que George fez a Eric Clapton, pois Clapton, segundo George, adorava doces principalmente trufas.
Lennon também foi brilhante, deixando clássicos como Sexy Sadie, feita para o pilantra do Maharishi, o guru indiano que roubou os Beatles até eles perceberem; Dear Prudence, Glass Onion, I'm So Tired... John mandou muito bem neste disco, mostrando que pode ser tão versátil como McCartney, fazendo baladas como Julia - uma melodia triste, mas muito bonita - até louqueiras como Everybody's Got Something To Hide Except For Me And My Monkey, e seu poderosso Yer Blues, Happiness Is A Warm Gun, com um ritmo complexo no meio da canção e os vocais lembrando Paperback Writer. Revolution 9 não passa de uma colagem de efeitos com vários loops de efeitos com o desfecho de "We Want Mary Juana, We Want Mary Jane"; e por falar em Mary Jane, What's The New Mary Jane ficou de fora do álbum branco por ser muito anti-comercial, assim como a Psicopauleira "Not Guilty" de George, que só foi lançada 10 anos mais tarde. Realmente George era um cara que sentia a música quando tocava riffs poderosos... gênio. Ringo conseguiu ter um ótimo desempenho como instrumentista - em Helter Skelter ele esmurrou os pratos como eles mereciam ser esmurrados, suas levadas estavam muito mais trabalhadas. Ele havia realmente evoluído como instrumentista. Como compositor, Ringo contribuiu com Don't Pass Me By. Pois bem está aí e como McCartney costuma dizer a quem fala mal do álbum branco: "It sold a lot, it's the bloody Beatles White Album... Shut up".
O 1º disco, que começa com o vivo e vibrante "Back in the USSR" de Paul, é talvez o melhor pelo brilhantismo de composições como "While My Guitar Gently Weeps" de George, "Blackbird" de Paul e duas de John, a linda balada "Julia" e o rico "Happiness is a Warm Gun". Não se esgota aqui a qualidade. O invocativo "Dear Prudence" é fantástico na aproximação gentil que faz à vida, "Glass Onion" desafia ironicamente o mito "beatlesco" e Paul tem em "Ob-la-Di Ob-la-Da" uma das suas famosas canções e em "Martha My Dear", "Rocky Racoon" e "Why Don't We Do It In The Road" das mais interessantes, a primeira por força da riqueza musical e a duas últimas pela inovação temática, crueza e originalidade.O lado 2, apesar de menos interessante musicalmente, é também pleno de inovação. O proto-metaleiro "Helter Skelter" redefiniu a ideia de pesado, "Everybody's Got Something to Hide Except For Me and My Monkey" segue a mesma onda de "Why Don't We...." na simplicidade da letra mas é musicalmente apelativo pela inteligência rítmica e vivacidade. Encontramos até John fazendo um blues repressivo e zangado com "Yer Blues" e orquestrando uma das mais interessantes composições musicais do albúm, com "Sexy Sadie", uma suave nota de culpa, melódica e polémica, devido à associação com o guru Maharishi.Outras faixas de referência são "Revolution 1", uma mensagem política contra a revolução violenta que muitos achavam necessária naqueles tempos conturbados (procure-se no You Tube uma versão mais acelerada), "Long Long Long", que é uma das mais sub-estimadas canções do grupo e "Savoy Truffle", que prima sobretudo pela piada.

( João Passos, em http://ocean-drive.blogspot.com/ )

sábado, 8 de novembro de 2008

Reflexões Sobre Duchamps - Jasper John



Marcel Duchamp(O Grande Vidro - a noiva desnudada pelos celibatários)
http://myamagawa.blog.uol.com.br/arch2007-02-29_2007...

Pouco depois de sua morte, houve aquelas entrevistas publicadas em em duas revistas de arte. Quase no final de uma delas, Duchamp disse: "Não sou nada além de um artista. Estou confiante e encantado em sê-lo." A outra entrevista terminava assim: "Oh, sim. Ajo como um artista embora eu não seja um." Pode haver alguma malícia nessas descrições contraditórias ou, talvez, certa falta de vontade de considerar qualquer definição como sendo conclusiva.

Uma fascinação com as tentativas de todos os estados-de-coisas era refletida pela manipulação indiferente que Marcel fazia de valores e definições ligados a obras de arte. Ele foi o primeiro a ver ou dizer que o artista não tem total controle das virtudes estéticas de sua obra, que outros contribuem para a determinação da qualidade. Ele perecia imaginar a obra de arte como envolvida em uma espécie de reação em cadeia até que fosse, de algum modo, capturada ou parada, fixada pelo "verdadeiro final" da posteridade. Essa preocupação com coisas se movendo e paradas - exemplificada em sua obras Nu descendo a escada, A passagem, Três medidas padrão, os "pistons delineados" e a poeira fixada no Grande vidro, os Rotorrelevos etc - focaliza as alterações de peso das coisas, a instabilidade das nossas definições e medições.

O readymade foi movido mentalmente e, depois, fisicamente, para um lugar ocupado previamente pela obra de arte. As consequências desse simples rearranjo provavelmente ainda não se esgotaram. Mas por enquanto, o readymade parece permanecer naquele lugar, um exemplo do que a arte é, uma nova unidade de pensamento.

Trazer a dúvida para o ar que envolve a arte pode ter sido uma grande obra de Duchamp. Ele não parece ter exagerado nenhuma das condições para a arte, atacando as idéias de objeto, artista e espectador com igual intesindade e observando a sua interação com desprendimento e igual intensidade, nunca com qualquer demonstração física especial de otimismo, e com freqüência a partir de pontos de vistas conflitantes.

Mas Marcel nunca nos deixava seguro a respeito de qualquer afirmação que se fizesse sobre ele. Nunca reivindicou aquilo que deveríamos reivindicar para ele. (Reflexões Sobre Duchamp, de Jasper John, texto publicado em Escritos de Artistas Anos 60/70. Organização de Glória Ferreira e Cecília Cotrim. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2006)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Cristina Bastos


http://www.overmundo.com.br/perfis/cristina-bastos

CRISTINA BASTOS - Nasceu em Uberlândia (MG), em 1960, e vive atualmente em Brasília. Formada em Educação Artística. Sua atividade não se limita à poesia — é artista plástica e fotógrafa e se orgulha de ter pertencido ao grupo “Ladrões de Alma”, que promoveu várias exposições em Brasília. Escreve desde 1972 e tem poemas publicados nas Antologias Poética Hélio Pinto Ferreira, volumes X, XI e XII, e em Intimidades Transvistas (Editora Escrituras), 1997, coletânea de poemas inspirados na obra do artista plástico Valdir Rocha. Assim que publicou seu primeiro livro, Cristina Bastos passou a ser considerada uma das mais importantes vozes da nova poesia de Brasília. Publicações: Decerto Deserto, 1992, Editora Iluminuras; Teia, 2002, Varanda/Massao Ono Editor.

Companhia dos Ratos

Há um rato
devorando meus livros

ouço-o
não o mato.

Mora na estante
dos livros imaginários
ruídos

deixo que ele habite
por indecisão
em destruí-lo,

como eu
se alimenta de letras
e riscos

Qualquer Coisa

Vasa pela fresta
do vaso quebrado
o verbo,

não carece mais
que um insípido objeto
para ser

verso
transbordante

XXI

Artaud
volto a fazer teatro
a escavar no fundo
a gesto de cada ato

A andar nua
na sociedade de trapo.

Verso bailarino

Poemas que dançam
são etéreos

preferem
não ser impressos

valsam
sugerindo.


Decerto Deserto I

Há cactus
há dias
firo meus pés.

Borboletas
me fazem rir
são descaradamente belas

Como podem...

Como pólen
e sou quase
coisa bela.

Com meu cajado
sou grande
quase o deserto,

para o deserto
sou quase
borboleta bela.

Aceito

Se estranha a teia
assimilo o asco
do desconhecido,

aranha enorme,

uma batalha disforme
entre verbo
e a garra do instinto

Nua

A máscara está deposta
desconhece-me
eu sei sobre seu espanto

certamente
não será a última,

já tendo me despido
esqueço-a,

máscaras morrem
quando postas sobre a mesa.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Demorô: Poemas de Paulo Kauim


meu pai
é
meu poe

rimbaudelairezrapoundonnepittalurgregório

meu mário de sá carneiro
meu mário de andrade
meu mário faustino

gabrielbecruzesousândradécio

meu pai
é
meu mallarminskilkerry
meu maiakóvskikaq

haroldoaugustodosanjosdecamposwaldrummond

é bandeira
é quintana
ferreira

é
cabral
cassiano
caixeta

ele é minha muna
ele é minha pagu

meu pai
é
meus paes

meu pai
é
seu severeino

seu
biu



joão sem plumas

a língua de joão
não é de cão
da arcádia

a língua de joão
é espessa ( de
cadela pernambucana )

ele é o embaixador
da palavra
pregada na página

aprendo com João
a ser
oceano e sertão

não há plumas em cabral
há lama e urina

ele é o rio
miró de caruaru
é severino e servilha

joão
rosa da zona
da mata


o nome
do galo
era cabral

sem fios
de sol ( ou cordel )
para tecer
a manhã

resolvemos
comê-lo
a palo seco



zé edson

pele de leopardo
e roupa de rapsodo
ao dorso

de
lira
pela
L2

pela
lexington

pela
palafita

tristesourinha

hermes
exu

de macapá
de manhattan
de macaparana

junkie sem vapor
sem beque
sem papelote

ginsberg uiva
renato urra
donne pita

arauto torto
da norte

michê mitsubische
conic-me
sou zé edson
em logopéia sobre a plataforma
da rodoviária do plano piloto

crepes camburões
o poeta diante das varizes do papel
diante do inabitável vazio do pós-humano

ela: asa norte
dia cabral
noite duchamps

eu: zé edson
poeta-antena
de um tempo tracajá

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

4 Contos de Paulo Siqueira



Henri Matisse - Lição de Música
www.ibiblio.org./.../matisse.lecon_musique.jpg

Paulo Siqueira é natural de Caratinga, Minas Gerais, e mora, em Sobradinho, Brasília. É professor de Português e Literatura na rede pública do GDF. Publicou o livro de poemas O Tao da Coisa (Da Anta Casa Editora, Brasília, 1995), Lâmina (LGE Editora, Brasília, 2004). Tem inéditos: Desardinagem, Livro de Palavras, Corpolivro, Abecedário, A Cabra e a Vassoura (todos de poemas), e um romance chamado Romance. Participa de Todas as Gerações - O Conto Brasiliense Contemporâneo (Organizado por Ronaldo Cagiano. Editora LGE, Brasília, 2006).“Acho que a literatura, como disse Décio Pignatari, é um modo de vida, não um meio; tão bom contar história é o uso da função poética, a linguagem transtornada pelo poético, a desconfiguração da língua, intenção/não intenção, alegria e dor”.

RAIMUNDO

Lascado, jogado no ermo, sem dar conta de como viera parar ali, corpo murcho, coração ressecado, achava que precisava de Deus, um deus que explicasse o porquê de ele estar naquela danação. Construir um destino, uma história. Já umas não-sei-quantas facadas no bucho de fi-duma-égua de todo jeito, quantos modos de se arranjar entre o norte do Goiás e o Maranhão, e agora atirado no oco, numa Brasília erma em que só um corno desgraçado ia gostar de morar, querendo dizer para si mesmo que não foi ele quem matou, não foi ele quem inventou tanta morte.

LIVROS

Só ela, a organizar os volumes, limpá-los, registrar, catalogar; a pobreza da pequena escola, a falta de títulos interessantes, tudo emoldurando os gestos da mulher, isolada, traçada ali, sem dizer palavras, sem reclamar com palavras; seu corpo, seu todo era clamor; uma caixa grande de papelão, uma lata de thinner, uma flanela; não regia mais os movimentos nem se preocupava com a qualidade de serviço. Parou de passar álcool nas capas, começou a rasgar páginas, embolá-las e jogar dentro da caixa, que se encheu; inclinou-a um pouco e sem muita dificuldade foi entrando, aninhando-se, esticando o braço para apanhar o thinner, derramando-o sobre o papel, sobre o corpo, empapando o vestido, até esvaziar o frasco; depois o isqueiro.

SONHO

Céu brumoso e a montanha azul, paisagem-painel de Kurosawa, pano bordado imenso, flores árvores pássaros de tecido-céu da cor depois de grande chuva, tempo-manto-gabbeh se dizendo qual tudo desabrochasse por si, Sebastião, o tio andando comigo dentro da paisagem, falando do amor que a morte levara seu muito novo, toda flor folha céu muito exato-claro-sonoros – como se deus presenteasse o diaespaço, qual Modigliani, Matisse, digo Cézanne ou Gauguin.

LÂMINA

O gosto da lâmina banhada no sangue,um reluzido pouco na região aonde o vermelho não chegava,um vermelho querendo ficar preto, vacilando, quase seco, o paladar da faca repetindo-se nos dentes, amargo raro, desnatural, revirando o estômago; a treva nas vísceras, sol de culpas,céu seco, silêncio, o eco do silêncio, o corpo mastigado pela noite e cuspido no dia,igual o de um cão sem nada;despir-se daquele manto – como? nuvens estrelas galáxias manchadas pelo sangue endurecido, sangue impensado, cor sem termo,o sem-nome, corpo pensado pela faca, o gosto do osso que recobria o cabo habitando sua boca, a imagem da lâmina mordia pelo ventre do outro valsando no palato, esfaqueando-o, o morto carregando-o em um andor, flores de todas as formas, matizes de dor.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Feminismo Pós-Moderno - Eleanor Heartney



Toda violência é a ilustração do estereótipo patético...Barbara Kruger
bitaites.org/livros/a-ironia-das-palavras-est...

As feministas pós-modernas, adotando as designações impostas às mulheres pela cultura patriarcal – mulheres como natureza, mulher como corpo, mulher como emoções – insistiam que a arte não devia tentar oferecer imagens positivas da experiência da mulher, já que isso, inevitavelmente, acabaria servindo a uma ideologia ou outra. Acreditavam que a sua tarefa era revelar com as nossas idéias de ser mulher e feminilidade são construídas socialmente. Perseguiam a idéia de feminilidade como uma máscara – um conjunto de poses adotadas por mulheres a fim de se conformarem às expectativas da sociedade sobre o ser mulher. Defendiam que não existe uma essência feminina – a mulher seria um conjunto internalizado de representações. Isso se conformava, de maneira geral, à visão pós-moderna da realidade. Como formulou a teórica feminista Kate Linker, “na medida que a realidade só poder se conhecida através das formas que a articulam, não existe nenhuma realidade fora da representação”.
Para compreender o processo pelo qual nossas visões de feminilidade são produzidas, as teóricas feministas voltaram-se para a psicanálise. Sentiram-se particularmente atraídas pelos escritos do psicanalista francês Jacques Lacan, que conferiu à teorias freudianas do desenvolvimento infantil um movimento pós-estrutural. Segundo Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ele reescreveu O Complexo de Édipo em termos de relações de signos e significantes. O pai, que interrompe a identificação total do bebê com a mãe, torna-se, em Lacan, o Nome-do-Pai ou a Lei. É o representante da ordem simbólica, o mundo da linguagem em que a criança deve entrar para se tornar um membro da sociedade. Mas como a linguagem é sempre uma questão de significados aprovados e significantes desconectados de seus signos, a criança ao adquirir a linguagem perde a noção da totalidade que desfrutava em seu estado pré-edipiano. Portanto, os humanos são eternamente assediados pela noção da “falta”, e anseiam pela união rompida com o que a criança imaginou ser sua todo-poderosa mãe. Para Lacan, essa “falta” é a chave da psicologia. Ela inicia uma busca de substitutos que possam ocupar o lugar da chamada “mãe fálica perdida” (noção aparentemente contraditória que reflete a transformação lacaniana do falo para o significante de poder). Esses substitutos, conhecidos como fetiches, são objetos ou imagens (ou, em termos pós-estruturalistas, significantes isolados) em que os indivíduos carentes se fixam para abrandar um desejo impossível.
Não se pode deixar de perceber que tudo isso enfoca a formação do desejo masculino. É aí que entra a teoria feminista. Em um ensaio de grande repercussão e influência intitulado “Cinema Narrativo e Prazer Visual”, a teórica Laura Mulvey aplica a noção de fetiche à teoria do cinema. Ela argumenta que o cinema de Hollywood é estruturado em torno do olhar masculino. Supõe a existência de um espectador homem que transforma as mulheres em fetiches, ou da temida, mas desejada, “mãe fálica perdida” com a intervenção do pai ou da mulher castrada. Essa última é um artefato simbólico, cujo estado reduzido lembra ao homem a ameaça que a castração faz ao seu próprio poder. Portanto, ela é a figura que ele tem de subjugar para recuperar o domínio sobre o mundo.
Em seu extremo, o feminismo pós-moderno assumiu um tom puritano. As feministas do First Wave Feminists, que tinham celebrado a sexualidade feminina e expostos publicamente o seu próprio corpo nu, quase sempre voluptuosos, foram criticadas por fazerem o jogo das estruturas de poder patriarcal. As feministas pós-modernas, na tentativa de destruir o prazer estético que satisfazia os homens as custas das mulheres, muitas vezes perseguiram uma forma de iconoclastia, escolhendo trabalhar com as imagens de mulheres na mídia de uma maneira que reduzia o seu poder de sedução. Optaram por evitar representar o corpo feminino completamente baseadas na teoria de que qualquer forma de representação perpetua a objetificação da mulher.
Umas das artistas mais influentes nessa linha foi Bárbara Kruger. Como diretora de arte na década de 70, Kruger elaborou layouts para as revistas femininas da Conde Nast. Desenvolveu habilidades gráficas que empregou em seu trabalho de arte subseqüente, e uma noção que como as revistas manipulam seus leitores por meio das imagens. Como ela observou, “é dever da revista tornar você a imagem que ela faz da própria perfeição”.
Em sua arte, Kruger justapôs textos e descobriu ou criou imagens fotográficas de uma maneira que subverteu as convenções da mídia. Fragmentadas, removidas de seu contexto original e reproduzidas em preto e branco, as imagens estavam abertas a novas interpretações. Essa foram supridas pelos textos rigorosos lançadas como bandeiras de publicidade pelas imagens. Esses textos assumiram o tom autoritário da publicidade convencional, mas Kruger sutilmente manipulou a voz, invertendo a ordem em que o macho dominante fala como uma fêmea submissa. Neles, a voz é de uma mulher se dirigindo a um homem sobre as condições de suas desigualdades, mencionando que Seu olhar bate no meu ou anunciando Nós não seremos mais vistas nem ouvidas. Na última obra, Kruger combinou cada palavra com a sua tradução na linguagem dos mudos, sugerindo que, apesar de sua supressão, as mulheres encontrarão uma linguagem com que se comunicar. (Trecho extraído do livro Pós-Modernismo, de Eleanor Heartney. Ediotra Cosac & Naify. São Paulo, 2002.)

sábado, 30 de agosto de 2008

"A arte é a definição de arte" - Joseph Kosuth



David Beckham de Lagrenné

http://www.worth1000.com/cache/gallery/contestcache.asp?contest_id=3253&display=photoshop

"A arte não reproduz o visível, mas torna visível" - Paul Klee


"A arte sempre estará viva, enquanto expressão indispensável da experiência humana, enquanto importante meio de comunicação" - Anton Pevsner e Naum Gabo (manifesto)


"A arte é uma abstração. Tire-a da natureza e sonhe diante dela" - Paul Gauguin


"A arte é uma grande consoladora e aplacadora, ela representa a compensação mais preciosa das insuficiência da existência" - Sigmund Freud


"A arte é uma das condições para a realização do homem por si mesmo" - Christopher Caudwell


"A arte é o homem somado à natureza" - Van Gogh


"A arte é o falso" - Edgar Degas


"Arte = Homem" - Joseph Beuys


"A arte é também história. E expressa a nossa humanidade. A arte é intemporal, embora guarde a fisionomia de cada época(...) A criação é um desdobramento contínuo, em uníssono com a vida. A verdade da obra de arte é a expressão que ela nos transmite. Nada mais do que isso!" - Iberê Camargo


"A arte é transformar a própria vivência existencial, o próprio cotidiano, em expressão, uma aspiração que se poderia chamar de mágica tal a transmutação que visa operar no modo de ser humano, e da qual estão por certo afastados quaisquer teoria de ordem naturalista" - Hélio Oiticica
(Revista Discutindo Arte. Escala Educacional, 2007.)


sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Poemas do Zoo Inconsútil- José Edson dos Santos


http://www.amazoniavista.com.br/fotos

A Cobra e o Rato


- Para que realmente tenhas prazer e piedade,
não esqueças quando olhares a noite,
que serei uma estrela de cauda incandescente,
disse o Rato quando era devorado pela Cobra.


A Cobra sem remorso ou comoção
se deliciava com avidez e ironia:
- E serei todo o firmamento
a envolver o teu brilho opaco
e por mais que tentes tersiversar
fatalmente te encontrarás perdido
e nada mais...


O Broxar do Jacaré

Depois de dulcinicamente assassinar o Torquato

na Gargântua dos Duendes Silibrinos

(exercício cínico de criação coletílica)

o Jacaré apresentou

uma diamba capeta

à Sucuri serelepe e multicolorida

e foram beber a lua de úbere

que se desmanchava

na avenida L-2.


Prontamente

a lombra bateu nos sentidos

levando os dois nefelibatas

ao itinerário letárgico

do Grande Circular.


Doida noite desceu

na soturna boca do desvario

pela Asa Norte de sordidez

derrubaram cervas e vodcas

para chatear os infortúnios da virtude

e lembrar que o pecado

morava ao lado da kitchenette kitsch

que servia de studio e alcova.


A noite assobiava sendas e vícios

sob a fuligem dos viadutos e

os aviãozinhos rondavam as mesas

como se dissessem assim com o olhar:

- Olhaí, bacana, tem do branco

e tem do preto, tá a fim?

- Nada disso pau-de-rato!

Quando se paparica uma xotinha

não se perde a oportunidade

impunemente

nem pelo reino da lata!

Contra-ataca o Jacaré de relance.


A Sucuri suspira sua provocação ofídia

antes de dar o bote fatal

segura a mão do Jacaré

e maliciosamente deixa em cima

de sua xuranha orvalhada.


O Alligator de caralho duro

meio desprevenido

dá um uivo de tesão

antes de entrar no jogo

amoroso em pleno bar,


Sexta-feira bastarda

o garçom chega de repente

com a conta para cortar a onda

dizendo que irá fechar.


A Sucuri desapontada e cínica

retoca o batom carmim na boca,

olha o garçom com desprezo

e sentencia lacônica:

- Paga a conta, Jacaré!


Na kitsch kitchenette

o Alligator sob o abajur azul

e o David Sanborn na vitrola

descobre a constatação ululante

um Crocodilo e uma Cobra

sedentos de libidinagem

quando atravessam a madrugada bebendo

acabam ficando um caco sem pique.


Na hora de dar no couro

o Jacaré sente o drama freudiano

e brocha geral.


A Sucuri amuada e sonolenta
se vira de lado

e finaliza decisiva:

- Amanhã, não quero ver mais a tua cara, Jacaré!...
(Do livro Bolero em Noite Cinza, Da Anta Casa Editora. Brasília, 1995)






quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Poemas de Carla Andrade


http://www.algumapoesia.com.br/

Carla Andrade é mineira de Belo Horizonte. Mora em Brasília há sete anos, onde trabalha como jornalista. Publicou Conjugação de Pingos de Chuva pela LGE Editora. Brasília, 2007. Alguns de seus poemas foram premiados em concursos em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Para a jornalista e poeta Angélica Torres Lima, “Carla tem na voz um eco de infância outro de adolescência, e os dois tempos tramados dão à sua linguagem maturescente um hipnótico encanto. Quando se lê os versos dela, o dia segue mais fluido, a luz mais juvenil. Lê-lo de noite, então, é certo sentir a vida mais leve, as possibilidades do novo nas mãos”.

Como hipnotizar anzóis no tempo

Enfeitice
peões de mulheres
fantasiadas de nós
em chuvas
musicadas ao avesso.

Trance
o destino
bem acima
da última curva
dos ventos.

Liberte
o tropel de
tangos
das vertigens
adormecidas
em sonetos.

E por último
faça um agrado
como um sopro divino,
aos ogros verdes
da saudade.

Se tudo
resultar em nada
descanse os olhos
nas estrelas
aliviadas de brilho
sem respostas.

Jardim dos elos

Tento contar quantas
(tantas) borboletas
há em você.

Inquietas,
de cores extintas
sem sensores.

Mas aí, vêm seus grilos
de ressaca de breu
- não se calam,
(me confundem).

E há também libélulas,
a emudecer o silêncio
dos grilos com voz
de reticências,
pétalas.

Existe você
castelo de torre,
espera.

No calabouço, serpente,
botes de palavras.
Palavras...

Não sei contar
grilos,
borboletas,
libélulas.



Mas aprecio
o mistério da
dança das asas
sem norte.

Mural dos deuses

Neste nenhum
trocadilho da alma
há insônia de Baco.

Há o profano em
células,
cume de ossos,
em câncer,
trópicos.

O eterno na esquina,
no tráfego das mãos,
na romaria de dúvidas.

O fogo de cupim:
no celebro e sexo.

Há babas no mar
em despedidas de trovões
ressaca de barcos
no veludo de vozes.
O humano a se render.

Nos homens, a morte
imersa na arte.
Léxico dos deuses
Sopro com sede
No inferno.

Nos homens,
a pitada da ironia:
ser divino em pele de fungos,
em bactérias de dor,
em cascas do tempo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

SOLARIS


www.portalbrasil.net

P r o j e t o P o r t a l

A revista Portal Solaris — primeiro número do Projeto Portal, coordenado por Nelson de Oliveira — traz contos inquietantes que vão do universo da ficção científica ao do fantástico, passando pelo da fantasia.
São catorze narrativas sobre novas tecnologias, viagens no tempo, ciberespaço, telepatia, contatos imediatos do terceiro grau, pós-apocalipse, pós-humano, utopias e distopias, de dez autores contemporâneos de sete Estados brasileiros.
O Projeto Portal prevê seis números, com periodicidade semestral. Cada número homenageará, no título, uma obra célebre da ficção científica: Solaris, Neuromancer, Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit.
Os contistas da Portal Solaris são: Ataíde Tartari (SP), Carlos Emílio C. Lima (CE), Carlos Ribeiro (BA), Geraldo Lima (DF), Homero Gomes (PR), Ivan Hegenberg (SP), Luiz Bras (MS), Mayrant Gallo (BA), Roberto de Sousa Causo (SP) e Rogers Silva (MG).


P o r t a l S o l a r i s

revisão: Mirtes Leal • diagramação: Raquel Ribeiro
capa: Teo Adorno • formato: 16 x 23 cm
impressão: uma cor • tiragem: 200 exemplares

oliveira.e.cia@uol.com.br

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Eber birthday



Bruce Willis de Van Gogh

http://www.worth1000.com/cache/gallery/contestcache.asp?contest_id=3253&display=photoshop

Eber

José Edson dos Santos


Como perceber esse lobo bobo dos quarenta?

Como não enquadrar a lupa da sugesta
na alcatéia da Buena Vista Mallatesta?

Desarvorar na lente notívaga em dia de festa
Certamente uivando cerveja de seresta

A noite sutil perdoa quem não presta
na floresta midiática de ser a sua orquestra

Perceber
Eber
na foto do lobo que ostenta
algum vacilo algum cacoete

Depois disso tudo o farolete dos anos na testa
Onde dorme na indigesta ilharga a sonsa do falsete?

Brasília caliandra astigmática do poente cerrado
Licor de pequi para curar o porre que ficou no Conic


Se para o bom entendedor esse toque
não bate com teu roque

Entra numas
Eber

quarta-feira, 23 de julho de 2008

terça-feira, 22 de julho de 2008

Dois Poemas de Antonio Barreto



Salvador Dali, A Persistência da Memória

Antonio Barreto (Antonio de Pádua Barreto Carvalho) nasceu em Passos (MG) em 13 de junho de 1954. Reside em Belo Horizonte desde 1973. Morou também em algumas cidades do Oriente Médio, onde trabalhou como projetista de Engenharia Civil, na construção de estradas, pontes e ferrovias. Tem vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, para obras inéditas e publicadas, nos gêneros: poesia, conto, romance e literatura infanto-juvenil. Participa também de várias antologias nacionais e estrangeiras de poesia e contos. Foi redator do Suplemento Literário do Minas Gerais, articulista e cronista do jornal Estado de Minas e da revista “Morada” (BH). Colabora com textos críticos, poemas e artigos de opinião para “El Clarín” (Buenos Aires), “Ror” (Barcelona); “Zidcht” (Frankfurt), “Somam” (Bruxelas); ” : e outros periódicos. Atualmente coordena a Coleção “Para Ler o Mundo”, da Formato Editori.

COQUETEL MOLOTOV
(Receita Caseira Para Laboratórios Etílicos-Literários & Outros Movimentos Afins)
1. GARRAFA:
Pra fabricar um sonho
de mais valia
sentar na mesa
e pedir a dose
(No overnight da Poesia
uma garrafa é muito pouco
mas resolve)
2. GASOLINA:
Abastecer de outra
no bar da esquina
Encher o tanque
enquanto pode
(A saltitante bailarina
só tem corda
até as nove)
3. ROLHA:
Pra calar a boca
numa farra
fechar o tempo
enquanto chove
(Nessa falta de futuro
a touca amassa
e a massa dorme)
4. PAVIO:
Na cabeça a rolha
tem um furo
o mundo gira
e não se move
(Se a coisa toda
for na marra
a barra é suja
mas envolve)
5. FOGO:
Aí o tempo vira um tanque
e você chora: I love! I love!
A Bomba Humana pira o punk
que trinca os dentes
num serrote
(Se a ressaca então
for transmutante:
Sal de Frutas com Engov.
O sal saliva, a língua assa
e frisa o verso mais picante)
6. EXPLOSÃO:
A vida passa, a moda muda
e o palco aos poucos
descortina
O barulho ajuda
na fumaça
que saltar
da lamparina)
7. POSOLOGIA:
Evacuar uma só nota
a cada dia dezenove
que um soneto não se arrota
se consome se comove


POÊMIOS

Os poêmios bebem a noite inteira
e eruditos sobre a mesa
arrotam odes a Herodes
e nênias a Homero e Nero
Quando já cansados de lero-lero
e exaustos de tangar boleros
e sonâmbulos de sambar requebros
os poêmios se recolhem pelos
escuros becos alexandrinos
E assim se vão como bons meninos
a poemar
os prêmios de seus destinos
até que a noite tire do bolso o dia
E a poemada toda em algaravia
pára no caminho pra comer bombom
onde justamente outro poêmio dorme
como a pedra enorme de Drummond

quinta-feira, 12 de junho de 2008


Bruce Nauman,
Anthro/Socio (Rinde Sppinning), 1992

Artes Híbridas
Lúcia Santaella

Há muitas artes que são híbridas pela própria natureza: teatro, ópera, performance são as mais evidentes. Híbridas, neste contexto, significa linguagens e meios que se misturam, compondo um todo mesclado e interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe integrada. Nesse território, processos de intersemiose tiveram início nas vanguardas estéticas do começo do século XX. Desde então, esses procedimentos foram gradativamente se acentuando até atingir níveis tão intricados a ponto de pulverizar e colocar em questão o próprio conceito de artes plásticas.

São muitas as razões para esse fenômeno da hibridização, entre os quais devem estar incluídas as misturas de materiais, suportes e meios, disponíveis aos artistas e propiciadas pela sobreposição crescente e sincronização conseqüente das culturas artesanal, industrial-mecânica, industrial-eletrônica e teleinformática. Uma vez que a questão das hibridizações nas artes é muito vasta, selecionei para discussão três campos que me parecem os mais significativos. Primeiro: as misturas no âmbito interno das imagens, interinfluências, acasalamentos, passagens entre as imagens artesanais, as fotográficas, incluindo cinema e vídeo, e as infográficas. Segundo: as paisagens sígnicas das instalações e ambientes que colocam em justaposição objetos, imagens artesanais bi e tridimensionais, fotos, filmes, vídeos, imagens infográficas e ciberambientes numa arquitetura capaz de instaurar novas ordens de sensibilidade. Terceiro: as misturas de meios tecnológicos presididos pela informática e teleinformática que, graças à convergência das mídias, transformou as hibridizações das mais diversas ordens em princípio constituitivo daquilo que vem sendo chamado de ciberarte.

Antes de tudo, cumpre apresentar um breve retrospecto para caracterizar em que momento, no percurso da arte moderna, as misturas entre as imagens e meios começaram se fazer sentir de modo mais intenso.

No seu objetivo progressivamente perseguido de desconstrução dos cânones herdados da Renascença e de rupturas da dependência da imagem dos objetos do mundo, a trajetória da arte moderna se estendeu pelo menos, de Cézanne a Mondrian. Do século XV ao século XIX, pinturas, gravuras e esculturas, de um modo geral, “representavam o mundo, real ou imaginário, como consistindo em figuras distintas, bem definidas e reconhecíveis em um espaço tridimensional ampliado”.

Entretanto, desde finais do século XIX, as artes já haviam abandonado as estruturas de espaço e tempo, de movimento e ordem dos modelos visuais legados pela tradição. Desde que Cézanne começou a procurar as estruturas espaciais essenciais que estavam subjacentes às impressões visuais sempre mutáveis, deu-se por iniciado um itinerário crescente de implosão dos sistemas de codificação artísticos e mesmo de seus suportes e materiais, assim como modos de fazer arte.

Mondrian é paradigmáticamente apontado como encerramento de um ciclo porque, justamente com outros abstracionistas geométricos, levou a abolição do figurativo e a ruptura com a denotação referencialista aos seus limites, como se a arte moderna tivesse aí finalmente encontrado um destino cujos germens já estavam semeados em Cézanne. Ora, o fim do ciclo desconstrutor da arte moderna, seu ponto de chegada, coincidiu com o ponto de partida de um fenômeno que passou a marcar crescentemente os caminhos da arte : a explosão dos meios de comunicação e da cultura de massas no contexto de uma expansão tecnológica que não cessa de avançar.

Desde os anos 50, acentuando-se nos anos 60 e, mais ainda nos 70, sofrendo o impacto dessa expansão, os processos artísticos, a partir da Pop Art, por exemplo, começaram a apresentar processos de mistura de meios e efeitos, especialmente dos pictóricos e fotográficos. Fazendo uso irônico, crítico e inusitadamente criativo dos ícones da cultura de massa, deram continuidade à hibridização das artes já iniciada no Dada, hibridização esta que se intensificou na década de 70, quando as instalações e ambientes começaram a proliferar. De acordo com os teóricos da pós-modernidade, na década de 60, a arte moderna, já crepuscular, cedia terreno para outros tipos de criação, dentro de novos princípios que são chamados de pós-modernos. Ora, se há uma face proeminente nesses princípios, essa é a face das misturas, passagens, hibridizações entre artes e entre imagens: as passagens entre imagens; as passagens sígnicas das instalações e o hibridismo digital.
( Texto extraído do livro de Lúcia Santaella: Culturas e artes do Pós-Humano – Da Cultura das mídias à Cibercultura. Editora Paullus. São Paulo, 2004 )

sábado, 7 de junho de 2008

Menezes y Moraes



Poetas: José Edson, Ivan Monteiro e Menezes y Moraes

Menezes y Moraes

Jornalista, professor e escritor, nasceu em Altos João de Paiva, e vive em Brasília desde 1980. Ex-presidente do Sindicato dos Escritores do DF. Tem 10 livros publicados: um de contos, uma peça de teatro, e oito de poesia, entre os quais Na micropiscina da lágrima feliz (poesia) e Por favor, dirija-se a outro guichê (teatro).

A Hora da Existência Calma

Lentamente a tarde recolhe
o cenário do tempo
e a noite entra em cena
feito um grito que irrompe do silêncio
com suas estrelas salpicadas de infinito
nessa hora da existênciaflita
os corações dos vivos se agitam
Queremos morte ao cogumelo atômico
Procuro o inatingível nos teus olhos
para transformá-lo em guia
y meu abrigo
A vida é intransferível e não hesito:
em ti eu confio

Garças do Paranoá

Garças no Paranoá
dizei-me
águas mais poluídas?
Valei-me
Garças do Paranoá
quintal de poder
mais careado
Não há
Garças do Paranoá
que notícias me dás dos morto
do acampamento Pacheco?
Garças do Paranoá
valei-me
serei feliz?

À mim não importa
se o destino quis
ou não quis

Eu sou feliz
desde o instante
em que me quis

Nós

Marquei encontro comigo e cheguei atrasado
Mas esperei por mim até o limite do intolerável
E olhei dentro dos olhos
espelhos do azul multiplicado
e sorrimos enternurados
partilhando sonhos inventando outras cidades
Depois pegamos o chapéu do tempo o casaco da vida
e fomos à luta contra as tempestades
Corações enflorecidos gritam na madrugada
Aurora do ser queu buscava é o amor que me esperava



A Olimpíada do Amor

Amor sublime dor
O coração de quem ama é cama de campanha
quando o amor se equilibra
campo de batalha
na corda bamba
ringue das artimanhas

O amor organiza o tempo

Há quem pensa que o amor é profissão
O amor é fundamental
o Tao branco de lavanderia celeste
lava mais ternura no coração do agreste
brota lágrimas nos olhos de Deus
O amor move o vento o amor é ateu

Sacrossanto auto-estrada do pensamento
corre atrás vai à luta
o amor é leveza anti-força bruta
razão do sentimento
o amor é sacerdócio
o amor é pasta de grão de bico
no pão integral do tempo

O homem-sonho é conteúdo da semente?
O amor faz chover em Brasília
O amor tem a fórmula
anticárie-carência da existência

“o amor força as portas dos infernos”?
em noite cinza diz um poeta amigo meu
o amor é um bolero

Enquanto o ódio se amputa
e o homemáquina se estraçalha
o amor é do caralho

E mesmo que o homem se compute
e a vida se distraia
o amor detona o tédio nos campos de batalha

Aquecimento Global

sexta-feira, 23 de maio de 2008

5 Poemas de PAULA TAITELBAUM




quasepoema.zip.net/images/taitelbaum.JPG
http://www.navevazia.com/trinta/2006/10/22_paula_taitel.html


PAULA TAITELBAUM, escritora, publicitária, jornalista. Nasceu na primavera de 1969 em Porto Alegre. Autora dos livros de poemas Eu Versos Eu (Fumproarte, 1998), Sem Vergonha (L&PM, 1999), Mundo da Lua (L&PM, 2002), Porno Pop Pocket (L&PM, 2004). Escreve para a Revista Estilo Zaffari e é colaboradora da Revista Claudia. Redatora Publicitária, Professora de Redação Publicitária da ESPM - Escola Superior de Propaganda e Marketing. Trabalha também com desenvolvimento de projetos culturais.

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Ela pega a bolsa, ajeita a blusa e vai
Vai correndo pela rua feito um trem
Sem olhar para nada nem ninguém
Sem freio vai enfrentando o atrito do ar
Vai sem conseguir nem ao menos respirar
Ela só pensa em alcançar aqueles braços
Percorrer com a língua todos os seus traços
Vai correndo porque quer penetrar em outra pele
Falecer num gozo que a revele

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Ele gosta de mulheres com falo
no meio das falas
com palavras que pingam
e frases que entram rasgando
Ele gosta de mulheres que fodem
com as regras de gramática
que comem letras
quando estão gozando

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Silicone, espartilho
algemas e salto fino
tudo farsa
depois da festa
ela tira
o disfarce
desfaz a pose
e de posse
de seu pênis
de pilha
vai comer
a sua ervilha

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Na vulva vibra a larva
que logo será borboleta
sairá do casulo
vai virar uma boceta

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Desenhe círculos
sobre meu clitóris
infinitos pontos finais
um para cada um
dos meus ais

quarta-feira, 14 de maio de 2008

ANTONIN ARTAUD


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Artaud: a escrita masturbatória
Daniel Lins


Como falar sobre Antonin Artaud? O exercício parece impossível. Artaud explicado é uma abominação. Experimentar, ao invés de falar sobre, eis a que condenado. Atravessar o corpo de Artaud, atingir o corpo da terra e com ele os poros, os tóxicos, os sonhos envenenados por uma vida em guerra radical contra as representações, é mais que um desafio, é um exercício de recriação da vida pensada, imaginada, interpretada; é a invenção do corpo-pais, campo do transcendental no sentido deleuziano: “Quando se abre o mundo pululante de singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-individuais, Pisamos, afinal, no campo do transcendental”. Engendrar uma produção de Artaud, numa espécie de encarnação de uma escrita crua regada pelo sangue, pela saliva, pelo excremento: uma escrita fecal. Fecalidade como um corpo-sopro imbuído de merda, campo fulgurante, onde “a merda cheira a ser”, onde o excremento torna-se, na perspectiva artaudiana, a imagem da morte. Fecalidade que não atesta o amor pela escatologia mas a negação de uma ontologia centrada no identitário., no Uno, no Absoluto

Onde cheira à merda
cheira a ser
O homem podia muito bem não cagar
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
Assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto
(...) aceitou viver sem corpo
quando uma multidão
descendo da cruz
à qual deus pensou tê-los pregados há muito tempo,
se rebelava
e armava com ferros, sangue,
fogo e ossos
avançava desafiando o Invisível
para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.

Mas vivenciar é também experimentar pensamentos nômades, produzir uma escrita das vísceras, elaborar conceitos grávidos de acontecimentos e trabalhar com citações inseridas no universo da contaminação e não da cópia, criando assim uma nova linguagem que cheira à vida, com suas impurezas, sujeiras, e que, de deslize em deslize, fabrica uma “enorme fábrica de carne” engendradora da merda necessária para desenhar na folha branca a escrita saída das pedras. Pedras dos rins, da vesícula, da verga enrijecida: verga dor, verga-ensangüentada, priapismo cristão, ereção dolorosa e perpetuamente mantida. Pedra do ânus, ventosa vaginal, grande boca devoradora do sol; absorção, expulsão, orgasmo sem queda, grito condenado à sua própria jubilação, sem recaída nem final possível. Pedra como passagem que bloqueia os orifícios da vida – vagina, clitóris, vagina,cu, por onde o devir-cocô e o devir- Ser encontram sua singularidade regida por uma lógica do múltiplo sentido: “A merda nasce no cérebro, o Ser e o cocô são a mesma coisa, que carregam em si, com sua parte maldita, sua própria morte”. Para Artaud, “Viver é eternamente sobreviver remastigando seu eu de excrementos, sem nenhum medo de sua alma fecal, força que tem fome de enterro.

Mergulhador de mares e lagos profundos; mergulhador da essência radical, sob suas formas trágicas e absolutas, Artaud impõe à escrita o corpo a corpo, o “encontro marcado”, que significa também, em grego, encontro amoroso com a matéria, com a “linguagem matéria”, matéria que pensa, numa bacanal à qual não faltam nem as orgias escatológicas da “Festa de Deus”, selvagem e cruel, onde esperma e excremento se mesclam a Eros e Tanatos, nem uma ponta de revolta necessária à erotização da palavra e da criação literária, erotização-morte, morte que rima com amor. Artaud queria o corpo perfurando a língua, trespassando-a por confrontos hipersexuais – Heliogábalo – ou mágicos - Taraumaras -, executando, se necessário, uma espécie de esmagamento da carne e doa intestinos para chegar ao corpo da língua e da escrita: “Fui obrigado a cagar sangue pelo umbigo para chegar ao que almejava”, declara Artaud. Para ele, observou Anaïs Nin, “escrever também é doloroso. Só o consegue de maneira espasmódica e com grande esforço”. (Extraído do livro de Daniel Lins, Antonin Artaud: O Artesão do Corpo Sem Órgãos. Editora Relume Dumará. Rio de Janeiro, 1999. p.7-8-9)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

BERTOLD BRECHT


culturareligare.wordpress.com/2007/08/

Os que lutam

Há homens que lutam um dia
e são bons;

há os que lutam um ano
e são melhores;

há os que lutam muitos anos
e são muito bons;

mas há os que lutam a vida inteira:

estes são os imprescindíveis.

Bertolt Brecht

SE FÔSSEMOS INFINITOS


Fossemos infinitos

tudo mudaria

Como somos finitos

muito permanece.


QUEM SE DEFENDE


Quem se defende porque lhe tiram o ar

ao lhe apertar a garganta,

para este há um parágrafo

que diz: ele agiu em legitima defesa.


Mas o mesmo parágrafo silencia

quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.

E no entanto morre quem não come,

e quem não come o suficiente

morre lentamente.

Durante os anos todos em que morre

não lhe é permitido se defender.


NA MORTE DE UM COMBATENTE DA PAZ


Aquele que não cedeu

foi abatido

O que foi abatido

não cedeu.

A boca do que preveniu

está cheia de terra.

A aventura sangrenta

começa.

O túmulo do amigo da paz

é pisoteado por batalhões.

Então a luta foi em vão?

Quando é abatido o que não lutou só

o inimigo

ainda não venceu.

O Vosso tanque General, é um carro forte


Derruba uma floresta

esmaga cem homens,

mas tem um defeito - Precisa de um motorista


O vosso bombardeiro, general

é poderoso: voa mais depressa que a tempestade

e transporta mais carga que um elefante

Mas tem um defeito - Precisa de um piloto.

O homem, meu general, é muito útil:
sabe voar, e sabe matar

mas tem um defeito - Sabe pensar.

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