Lívia
Tinha em sua frente a estante de mogno com livros de arte e literatura. Perto da janela que moldurava o firmamento e os dias, a estatueta de uma índia marajoara. Na parede lateral da sala, as plantas sensitivas e uma trepadeira do cerrado. No trapézio improvisado preso ao teto, o periquito que trouxera de Santarém roia caroço de açaí, sujando o piso de cerâmica azul com afrescos art nouveau. No toca disco, ouvia baixinho Ella Fitzgerald, My Melancholy Baby. Lívia dormia serena sobre as almofadas espalhadas pelos cantos. Acendeu seu cigarro vesperal, tragando em espiral o instante. Levou a mão esquerda ao queixo apolíneo, remetendo à nostalgia do tempo em que dançava com Lívia no clube campestre do Leão do Norte. A orquestra tocava os clássicos que faziam os pés-de-valsa a suspirar perto da piscina, e ela sorrindo enigmática como se Ártemis irradiasse o luar. Estrelas cadentes riscavam o céu para caírem no quintal da lembrança. Saudade invadindo o vazio silente do ser.
Levantou da cadeira e foi até a cozinha. Abriu a geladeira na sôfrega vontade de alimentar o seu pantagruelismo momentâneo. Mastigar, engolir ou beber o sólido do possível para dar as calorias necessárias a sua compleição predadora. Escovou os dentes, deixando um pouco do flúor na boca, uma delícia instantânea e fria na língua. Volta à sala e instintivamente vislumbra os seios epicuristas colados na blusa de meia de Lívia. Ela, como uma gata angorá manhosa, se vira em decúbito dorsal. Começa massageá-la com carinho por toda extensão de suas costas, mapeando a coluna cervical, vértebra por vértebra, até atormentá-la no arrepio da nuca que logo se alucina por toda a carne em delírio, como no mito do corpo fatídico, do adorável corpo lascivo de luxúria. Com tesão vai acariciando suas coxas desprevenidas, beijado-as com ardor entre as patelas da vertigem.
Se introduz assim na circunstância do desejo, desenhando a hora alada do corpo em frenesi. Hipocampos nadando em olhos siderais. Sempre buscou os lances dos sentidos nos gestos psicodramáticos, na semiótica corporal da paixão, na magia espontânea da natureza humana com seus ritos cotidianos. Tamborilou os dedos na mesa de mosaico que ganhara de Telma, sua prima paraense por quem nutriu um platonismo recalcado na adolescência. Completamente sodomizado do arrebatamento, retorna em transe à sala onde Lívia resfolegava como uma deusa esplendorosa do Kama Sutra capital. Sente uma vaidade vanguardista por compreender Os Jardins das Delícias, de Hieronimus Bosch. As metamorfoses do olhar no espelho da memória. Janela dos amantes e o mar.
Da rua chega o cheiro das primeiras mangas maduras. Afaga os cabelos ondulados de Lívia com ternura, como se estivesse recriando histórias do inconsciente, mitologias da infância pelo rio Amazonas, narrativas coletadas nos livros de Alexandre Dumas, Lewis Carrol, Jack London, Ernest Hemingway e Ana Maria Machado. Um luar demiurgo se insinua agora. Nem sente comoção dos latidos do perdigueiro Billy vindo da varanda. Violinos ciganos harpejam sua memória atávica, fotografando situações impressionistas e mirabolantes que haviam caído na gaveta do esquecimento. Lembranças do cais em Macapá. Paisagem noturna da Praça da República, em Belém. Cervejas urdidas no calor doloroso de Teresina. O espaço e o céu aberto de Brasília quando candanga. Rios, cachoeiras, florestas. Pessoas intransferíveis do mesmo cogito torquateano da dor.
Jogou paciência com meticulosidade por algum tempo, pensando deixar para depois o abraço do morfeu exaurido, ao lado da languidez de Lívia, para sentir bem de leve a sonolência chegando sem pedir licença. Começa a chover quando imagina elfos e nereides acoplados no The Dark Side of the Moon, com o Pink Floyd. Cria um cenário acrílico onde sonha a noite indolente e seus mergulhos nas profundezas abissais e oceânicas. Quem sabe no outro dia tente retornar à pagina que deixou marcada no Fragmento do Discurso Amoroso. Lívia gosta muito de ler os ensaios de Roland Barthes e dos franceses como Georges Bataille com a sua História do Olho.
Tudo como no caleidoscópio sobre a mesa de mosaico que Telma esquecera depois do jantar. Aquele momento assim mesmo num lago de antúrios. O silêncio se condensa em névoas distorcidas com a invenção de bocejos intermitentes. Música celta com incenso indiano de Lívia no ar. Mar.
Tinha em sua frente a estante de mogno com livros de arte e literatura. Perto da janela que moldurava o firmamento e os dias, a estatueta de uma índia marajoara. Na parede lateral da sala, as plantas sensitivas e uma trepadeira do cerrado. No trapézio improvisado preso ao teto, o periquito que trouxera de Santarém roia caroço de açaí, sujando o piso de cerâmica azul com afrescos art nouveau. No toca disco, ouvia baixinho Ella Fitzgerald, My Melancholy Baby. Lívia dormia serena sobre as almofadas espalhadas pelos cantos. Acendeu seu cigarro vesperal, tragando em espiral o instante. Levou a mão esquerda ao queixo apolíneo, remetendo à nostalgia do tempo em que dançava com Lívia no clube campestre do Leão do Norte. A orquestra tocava os clássicos que faziam os pés-de-valsa a suspirar perto da piscina, e ela sorrindo enigmática como se Ártemis irradiasse o luar. Estrelas cadentes riscavam o céu para caírem no quintal da lembrança. Saudade invadindo o vazio silente do ser.
Levantou da cadeira e foi até a cozinha. Abriu a geladeira na sôfrega vontade de alimentar o seu pantagruelismo momentâneo. Mastigar, engolir ou beber o sólido do possível para dar as calorias necessárias a sua compleição predadora. Escovou os dentes, deixando um pouco do flúor na boca, uma delícia instantânea e fria na língua. Volta à sala e instintivamente vislumbra os seios epicuristas colados na blusa de meia de Lívia. Ela, como uma gata angorá manhosa, se vira em decúbito dorsal. Começa massageá-la com carinho por toda extensão de suas costas, mapeando a coluna cervical, vértebra por vértebra, até atormentá-la no arrepio da nuca que logo se alucina por toda a carne em delírio, como no mito do corpo fatídico, do adorável corpo lascivo de luxúria. Com tesão vai acariciando suas coxas desprevenidas, beijado-as com ardor entre as patelas da vertigem.
Se introduz assim na circunstância do desejo, desenhando a hora alada do corpo em frenesi. Hipocampos nadando em olhos siderais. Sempre buscou os lances dos sentidos nos gestos psicodramáticos, na semiótica corporal da paixão, na magia espontânea da natureza humana com seus ritos cotidianos. Tamborilou os dedos na mesa de mosaico que ganhara de Telma, sua prima paraense por quem nutriu um platonismo recalcado na adolescência. Completamente sodomizado do arrebatamento, retorna em transe à sala onde Lívia resfolegava como uma deusa esplendorosa do Kama Sutra capital. Sente uma vaidade vanguardista por compreender Os Jardins das Delícias, de Hieronimus Bosch. As metamorfoses do olhar no espelho da memória. Janela dos amantes e o mar.
Da rua chega o cheiro das primeiras mangas maduras. Afaga os cabelos ondulados de Lívia com ternura, como se estivesse recriando histórias do inconsciente, mitologias da infância pelo rio Amazonas, narrativas coletadas nos livros de Alexandre Dumas, Lewis Carrol, Jack London, Ernest Hemingway e Ana Maria Machado. Um luar demiurgo se insinua agora. Nem sente comoção dos latidos do perdigueiro Billy vindo da varanda. Violinos ciganos harpejam sua memória atávica, fotografando situações impressionistas e mirabolantes que haviam caído na gaveta do esquecimento. Lembranças do cais em Macapá. Paisagem noturna da Praça da República, em Belém. Cervejas urdidas no calor doloroso de Teresina. O espaço e o céu aberto de Brasília quando candanga. Rios, cachoeiras, florestas. Pessoas intransferíveis do mesmo cogito torquateano da dor.
Jogou paciência com meticulosidade por algum tempo, pensando deixar para depois o abraço do morfeu exaurido, ao lado da languidez de Lívia, para sentir bem de leve a sonolência chegando sem pedir licença. Começa a chover quando imagina elfos e nereides acoplados no The Dark Side of the Moon, com o Pink Floyd. Cria um cenário acrílico onde sonha a noite indolente e seus mergulhos nas profundezas abissais e oceânicas. Quem sabe no outro dia tente retornar à pagina que deixou marcada no Fragmento do Discurso Amoroso. Lívia gosta muito de ler os ensaios de Roland Barthes e dos franceses como Georges Bataille com a sua História do Olho.
Tudo como no caleidoscópio sobre a mesa de mosaico que Telma esquecera depois do jantar. Aquele momento assim mesmo num lago de antúrios. O silêncio se condensa em névoas distorcidas com a invenção de bocejos intermitentes. Música celta com incenso indiano de Lívia no ar. Mar.
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