quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Heliogabalo - ANTONIN ARTAUD




Antonin Artaud, nasceu em Marselha em 4 de setembro de 1896, e faleceu em Ivry-sur-Seine, Paris em 4 de março de 1948. Foi poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês de aspirações anarquistas. Ligado fortemente ao surrealismo, foi expulso do movimento por ser contrário a filiação ao partido comunista. Sua obra O Teatro e seu Duplo é um dos principais escritos sobre a arte do teatro no século XX, referência de grandes diretores como Peter Brook, Jerzy Grotowsky e Eugenio Barba.
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Se em tôrno do cadáver de Heliogabalo, morto sem sepultura, e degolado pela sua polícia nas latrinas do seu palácio, há uma intensa circulação de sangue e de excrementos, em torno do seu berço há uma intensa circulação de esperma. Heliogabalo nasceu numa época em que toda a gente dormia com toda a gente e nunca se saberá onde nem por quem foi sua mãe realmente fecundada. Para um príncipe sírio como ele a descendência fez-se pela mãe – e, em matéria de mães, há em volta deste filho de cocheiro, recém-nascido, uma plêiade de Julias; e, utilizem ou não o trono, todas elas são putas rematadas,

O pai de todas, a fonte feminina deste rio de estupros e infâmias, tinha de ser cocheiro de fiacre antes de ter sido sacerdote; só isso explica o afã com que Heliogabalo, uma vez chegado ao trono, quer ser enrabado por cocheiros.

O caso é que a história, ascendendo por linha feminina às origens de Heliogabalo, depois inevitavelmente com esse crâneo nu e devastado, esse fiacre e essa barba que traçam na nossa memória a figura do velho Bassianus.

Que uma múmia destas servisse um culto, não condena em si mesmo o dito culto, mas os ritos imbecis e esvasados a que os contemporâneos das Júlias e dos Bassianos, e a Síria do recém-nascido Heliogabalo, o haviam reduzido.

Mas que ver como esse culto, extinto e reduzido às ossadas de gestos a que Bassianos se entregava, ressucita, desde o aparecimento de Heliogabalo menino nos degraus do templo de Emesa. E retorna, sob as práticas e os paramentos, a sua energia de ouro concentrado, de luz retumbante e cercada, e volta a ser prodigiosamente ativo.

Em todo o caso, o velho Bassino, apoiado a uma cama como a um par de muletas, teve, de mulher casual, duas filhas, Júlia Domna e Júlia Moesa. Teve-as e saíram-lhe bem. Eram belas. Belas e bem dispostas ao seu duplo ofício de rainhas e de chamarizes.

Com quem fez ele estas filhas? A História, até hoje, não o diz. E admitimos que isso não tenha importância, obcecados que estamos pelas quatro cabeças em medalha de Júlia Domna, Júlia Moesa, Júlia Soêmia e Júlia Momoea. E Júlia Moesa – tendo por marido Sextus Varius Marcellus, mas sem dúvida fecundada por Caracalla ou por Geta (filho de Júlia Domna, sua irmã), ou por Gessius Marcianus, seu cunhado, esposo de Júlia Momoea; ou talvez, Sétimo Severo, seu cunhado segundo – engendra Varius Avitus Bassinus, falso Antonino, Sardánapalo, e, enfim, Heliogabalo, nome que parece ser a feliz contração gramatical das mais altas denominações do sol.
(Fragmento extraído de Heliogabalo ou O Anarquista Coroado, de Antonin Artaud. Editora Assírio e Alvim. Lisboa, 1982.)

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