quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Os Abismos dos Amantes - Carlos Tavares de Melo



Carlos Tavares de Melo é jornalista, paraibano de João Pessoa, vive em Brasília há 24 anos, onde trabalhou no Correio Brasiliense, Jornal de Brasília e O Globo. Atualmente no Correio Web. O fragmento de Abismo dos Amantes faz parte do livro de contos Fábula da Febre. A Girafa Editora, São Paulo, 2005.
Prólogo
As sombras dançam, torcem-se, excitam-se, amam-se, pulsam vísceras do tempo em pêndulo envernizados pela memória, recitam versos na penumbra das línguas, há luz nas escarpas dessas almas, foscas as sombras; frágeis as mãos modelando odes nos refluxos dos ventres para túmidos espectros; as sombras escutam os ventos; os estribilhos da dor, retorcem-se inflam-se, alvéolos de luz em conchas marinhas; as sombras dançam, evolam-se, amam-se.

PRIMEIRO SOMBRA
Estrelas azuis, vermelhas, brancas transitam pelas galáxias dos versos. Nossos olhos rolam como rosas de chumbo pelas esteiras do mundo.

SEGUNDO SOMBRA
Dá-me uma estrela pelo amor dos lábios, pela língua dos astros. Rastreia-me com o lodo das luas, teu soluço de veludo - até fazer-me alvo do cometa incandescente.

PRIMEIRA SOMBRA
Semeia-me com o sêmen dos sonhos, com o plânctus do pesadelo, todos os dias. Dias de unir nossos verbos às pedras, ecos, unir nossos versos, unir nossos ventres à luz amalgamada da ficção que somos, do poeta que fomos.

SEGUNDA SOMBRA
Fulgores distantes e oriundos do nada ofuscam o que não queremos ser. Queremos luz, nada a não ser luzir, pulsar no coração do mundo e nadar nas transversais deste abismo. Somos apenas artérias, bulbos de flores raras em convulsão histriônica na mecânica da vida. Obstáculo do tempo que a clepsidra escoa, pequenas gotas do sereno amargo de ser. Dá-me teu fel.

PRIMEIRA SOMBRA
Quantas vejo não olho para o espelho e nada vejo? Reflexos pálidos do próprio espelho? Rugas precoces que o tempo imprime no rio da existência? Qual ferrugem que fulge no corpo arremessado contra as barreiras de luz?

SEGUNDA SOMBRA
Não vejo também no espelho. Tampouco no rosto que mira o contorno que não brilha, brilha, jamais reluz, caminha a esmo nas bordas de um prescipício.

PRIMEIRA SOMRA
Sinto medo. Estou com medo. Abrace-me.

SEGUNDA SOMBRA
De que? Sim, eu tenho medo, também. Mas sinto-me protegida na opacidade do espelho. Não quero ver-me. Quero sentir. Sentir o sabor e não existir porque nada assim é tátil, apesar do espelho em que nos refletimos.

PRIMEIRA SOMBRA
Mas somos sombras. As sombras do outro que jamais seremos revelam-se no curso das águas em que miramos os vincos que riscam nossas máscaras debruçadas sobre garfos e facas, sobre as ancas do amanhecer. Trôpegos entes engalfinhando-se em dores até as gotas de um seio ou nádega numa manjedoura de êxtase.

SEGUNDA SOMBRA
Sim, o que resta?

PRIMEIRA SOMBRA
Numa bandeira de sonhos misturaremos as outras sombras, as sombras das nossas hóstias, o néctar biliar das constelações que despencam no lado abissal dessa história, nossa bela e dúplice saga.

SEGUNDA SOMBRA

Nas margens abissais do teu corpo, se é que ele existe, seu corpo com esse ar de eternidade provisória, será apenas o meu caminho para que sua paina de honra e paixão seja cremada em frigideiras lunares. E um dia, sobre o prato amarelado do sol a se pôr, milhares de aves irão te roer, aves que fomos voejando em frêmitos, varando céus, infernos, céus, infernos, céus...

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