Henri Matisse - Lição de Música
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Paulo Siqueira é natural de Caratinga, Minas Gerais, e mora, em Sobradinho, Brasília. É professor de Português e Literatura na rede pública do GDF. Publicou o livro de poemas O Tao da Coisa (Da Anta Casa Editora, Brasília, 1995), Lâmina (LGE Editora, Brasília, 2004). Tem inéditos: Desardinagem, Livro de Palavras, Corpolivro, Abecedário, A Cabra e a Vassoura (todos de poemas), e um romance chamado Romance. Participa de Todas as Gerações - O Conto Brasiliense Contemporâneo (Organizado por Ronaldo Cagiano. Editora LGE, Brasília, 2006).“Acho que a literatura, como disse Décio Pignatari, é um modo de vida, não um meio; tão bom contar história é o uso da função poética, a linguagem transtornada pelo poético, a desconfiguração da língua, intenção/não intenção, alegria e dor”.
RAIMUNDO
Lascado, jogado no ermo, sem dar conta de como viera parar ali, corpo murcho, coração ressecado, achava que precisava de Deus, um deus que explicasse o porquê de ele estar naquela danação. Construir um destino, uma história. Já umas não-sei-quantas facadas no bucho de fi-duma-égua de todo jeito, quantos modos de se arranjar entre o norte do Goiás e o Maranhão, e agora atirado no oco, numa Brasília erma em que só um corno desgraçado ia gostar de morar, querendo dizer para si mesmo que não foi ele quem matou, não foi ele quem inventou tanta morte.
LIVROS
Só ela, a organizar os volumes, limpá-los, registrar, catalogar; a pobreza da pequena escola, a falta de títulos interessantes, tudo emoldurando os gestos da mulher, isolada, traçada ali, sem dizer palavras, sem reclamar com palavras; seu corpo, seu todo era clamor; uma caixa grande de papelão, uma lata de thinner, uma flanela; não regia mais os movimentos nem se preocupava com a qualidade de serviço. Parou de passar álcool nas capas, começou a rasgar páginas, embolá-las e jogar dentro da caixa, que se encheu; inclinou-a um pouco e sem muita dificuldade foi entrando, aninhando-se, esticando o braço para apanhar o thinner, derramando-o sobre o papel, sobre o corpo, empapando o vestido, até esvaziar o frasco; depois o isqueiro.
SONHO
Céu brumoso e a montanha azul, paisagem-painel de Kurosawa, pano bordado imenso, flores árvores pássaros de tecido-céu da cor depois de grande chuva, tempo-manto-gabbeh se dizendo qual tudo desabrochasse por si, Sebastião, o tio andando comigo dentro da paisagem, falando do amor que a morte levara seu muito novo, toda flor folha céu muito exato-claro-sonoros – como se deus presenteasse o diaespaço, qual Modigliani, Matisse, digo Cézanne ou Gauguin.
LÂMINA
O gosto da lâmina banhada no sangue,um reluzido pouco na região aonde o vermelho não chegava,um vermelho querendo ficar preto, vacilando, quase seco, o paladar da faca repetindo-se nos dentes, amargo raro, desnatural, revirando o estômago; a treva nas vísceras, sol de culpas,céu seco, silêncio, o eco do silêncio, o corpo mastigado pela noite e cuspido no dia,igual o de um cão sem nada;despir-se daquele manto – como? nuvens estrelas galáxias manchadas pelo sangue endurecido, sangue impensado, cor sem termo,o sem-nome, corpo pensado pela faca, o gosto do osso que recobria o cabo habitando sua boca, a imagem da lâmina mordia pelo ventre do outro valsando no palato, esfaqueando-o, o morto carregando-o em um andor, flores de todas as formas, matizes de dor.
RAIMUNDO
Lascado, jogado no ermo, sem dar conta de como viera parar ali, corpo murcho, coração ressecado, achava que precisava de Deus, um deus que explicasse o porquê de ele estar naquela danação. Construir um destino, uma história. Já umas não-sei-quantas facadas no bucho de fi-duma-égua de todo jeito, quantos modos de se arranjar entre o norte do Goiás e o Maranhão, e agora atirado no oco, numa Brasília erma em que só um corno desgraçado ia gostar de morar, querendo dizer para si mesmo que não foi ele quem matou, não foi ele quem inventou tanta morte.
LIVROS
Só ela, a organizar os volumes, limpá-los, registrar, catalogar; a pobreza da pequena escola, a falta de títulos interessantes, tudo emoldurando os gestos da mulher, isolada, traçada ali, sem dizer palavras, sem reclamar com palavras; seu corpo, seu todo era clamor; uma caixa grande de papelão, uma lata de thinner, uma flanela; não regia mais os movimentos nem se preocupava com a qualidade de serviço. Parou de passar álcool nas capas, começou a rasgar páginas, embolá-las e jogar dentro da caixa, que se encheu; inclinou-a um pouco e sem muita dificuldade foi entrando, aninhando-se, esticando o braço para apanhar o thinner, derramando-o sobre o papel, sobre o corpo, empapando o vestido, até esvaziar o frasco; depois o isqueiro.
SONHO
Céu brumoso e a montanha azul, paisagem-painel de Kurosawa, pano bordado imenso, flores árvores pássaros de tecido-céu da cor depois de grande chuva, tempo-manto-gabbeh se dizendo qual tudo desabrochasse por si, Sebastião, o tio andando comigo dentro da paisagem, falando do amor que a morte levara seu muito novo, toda flor folha céu muito exato-claro-sonoros – como se deus presenteasse o diaespaço, qual Modigliani, Matisse, digo Cézanne ou Gauguin.
LÂMINA
O gosto da lâmina banhada no sangue,um reluzido pouco na região aonde o vermelho não chegava,um vermelho querendo ficar preto, vacilando, quase seco, o paladar da faca repetindo-se nos dentes, amargo raro, desnatural, revirando o estômago; a treva nas vísceras, sol de culpas,céu seco, silêncio, o eco do silêncio, o corpo mastigado pela noite e cuspido no dia,igual o de um cão sem nada;despir-se daquele manto – como? nuvens estrelas galáxias manchadas pelo sangue endurecido, sangue impensado, cor sem termo,o sem-nome, corpo pensado pela faca, o gosto do osso que recobria o cabo habitando sua boca, a imagem da lâmina mordia pelo ventre do outro valsando no palato, esfaqueando-o, o morto carregando-o em um andor, flores de todas as formas, matizes de dor.