sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008


REGISTRO
RUBERVAN DU NASCIMENTO (PI)

Sou maranhensemente do Piauí por conta própria
Maranhense gularmente falando
nascido entre ostras e ossos
entre mijos e bostas
em mares de grandes peixes
e caldeirões de nada
Cheguei era fevereiro sem carnaval para mim
No ano em que Torquato fugia de vez
e Faustino voava no azul de algumas horas
Por causa de Torquato e do vento Faustino
a poesia campeia um mundo fechado de signos sim não sim
que se abre à medida que se sabe
equilibrar o tempo nas linhas da mão
Sou daqui como o rio que corre por aqui
Como o trilho que me trouxe até aqui
E depois do rio Rosário e Rosa Lia
Como um amor que a gente ama e come
como se fosse trilha pra um outro amor
movo a palavra novo
pronuncio
não morro aqui




eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nessa hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como sou
vidente
vivo tranqüilamente
todas as horas do fim

domingo, 24 de fevereiro de 2008


Edouard Manet. Portrait of Stéphane Mallarmé. 1876. Oil on canvas. Musée d'Orsay, Paris, France
Foto de Matisse: donaldedward.blogspot.com
MATISSE E MALLARMÉ

Matisse comentava assim a sua ilustração das poesias de Mallarmé : “É agradável ver um bom poeta transportar a imaginação de um artista de outro gênero e permiti-lhe a criar o seu próprio equivalente da poesia. O artista plástico, para tirar o melhor partido dos seus dons, deve procurar não aderir de uma maneira demasiado servil ao texto. Pelo contrário, deve trabalhar livremente, enriquecendo-se a sua própria sensibilidade ao contato com o poeta que se prepara para ilustrar. Ao chegar ao fim desta ilustração das poesias de Mallarmé gostaria de declarar simplesmente: Eis o trabalho que fiz depois de ter lido Mallarmé com prazer.” Henri Matisse. Escritos e Reflexões sobre Arte.

DOM DO POEMA
Stéphane Mallarmé

Eis o filho que herdei da noite de Iduméia!
Negra de asa sangrante e pálida, ninféia,
pelo vidro a queimar de arômatas e adornos,
pelos vitrais gelados, ah! ainda mornos.
A aurora se lançou ao lume angelical.
Palmas! E quando tal troféu alça afinal
a esse pai que um sorriso hostil concede à hora,
a solitude azul e estéril estertora.
Berço e canção, com tua filha e o impoluto
de vosso pés, acolhe o tenebroso fruto:
E tua voz, viola e cravo, em tal anseio,
com o dedo fanado apertarás o seio
de onde flui em alvor sibilino uma ama
para os lábios que o ar do azul virgem inflama?

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008


http://melts10.blogspot.com/2005_12_01archives.html
Noite Fraca
O cara tá podre de bêbado, parecendo um peru que quer vomitar. Chego por trás de bate-pronto e dou uma gravata no otário:
- Passa toda grana, zé cana!
- Não tenho. É o fim do mês.
Logo fico um bicho-doido e dou um tapa-telefonema no ouvido do infeliz, para ele se tocar que não brinco em serviço. Fico embucetado.
- Tô bebendo fiado desde ontem. É o fim do mês.
Enfio o dedo raivoso no olho do só cana, com a unha grande e suja de uma semana. A Dora, minha ex-amante, era a manicure e pedicure que de vez em quando dava uns tratos em minha pessoa. A safada me deixou por causa de um carinha do Serpro.
- Tem dó, meu distinto, sou casado e tenho três filhos para criar...
Fico puto de vez. Tiro o canivete com cabo de jequitibá que ganhei do meu avô quando ainda era pentelho. Frescura a minha numa hora dessa ficar pensando na minha família nordestina que não deu certo. Meu avô preto disse uma vez que tomou pinga com um sujeito chamado João do Vale, lá nas quebradas do Maranhão. Ninguém nunca ouviu falar de tal porqueira.
- Coloca a língua de fora, pau de cana!
- Por favor, meu senhor, eu sempre fui um trabalhador honesto...
Já emputecido e transtornado pela situação, puxo a porra da língua do cara fedendo a cachaça fajuta e dou um corte cego de canivete na horizontal. O babaca tenta gritar. Em vão, como um boi no matadouro morre. Os olhos esbugalhados de dar dó. Coloco o pé direito com força no peito do cu de bêbado não tem dono e dou um baculejo geral no pau-de-rato.
Confesso, hoje a noite foi fraca, mas o cara com cara de bundão olhava as estrelas em silêncio. Tava fazendo um calor arretado. Chuva que era bom só em outubro. Fiquei com uma puta pena do infeliz: apenas alguns vales-transporte meio desbotados, tíquetes-refeição de dez reais. Na carteira, a foto dele junto de uma mulher pálida e uma criança raquítica. O infeliz parecia desses românticos que pensam que quando a pessoa bebe encontra a felicidade.
Tenho dito para os meus chegados, ainda não dei certo como um verdadeiro delinqüente que tramou a rebelião do CAJE, mas se São Jorge for realmente o meu santo protetor, vai honrar essa medalinha que trago nem sei por que no peito. Um dia desse ainda faço um assalto que passe na televisão, no Jornal Nacional. E aí vou pagar cerveja a torto e a direito para os meus considerados que moram na Samambaia, que conhecem de cabo a rabo o meu funk. Tá ligado, ô meu?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008


http://rodolfovasconcellos.blogspot.com
DIA DO AVESSO

No bar singular toca um tema comum aos ouvidos populares. A Dona do Bar lê uma revista de fofoca, bebendo coca-cola no canudinho. Dois namorados bebem em silêncio na lateral, conversando em cena muda. Entra o Cliente com aspecto sombrio e vacilante. Traz apertando na mão um pequeno envelope, que guardará depois no bolso da calça.

Cliente – Ó dona, me serve uma pinga daquelas que ressuscita até defunto...

Dona do Bar – Tem 51, Velho Barreiro e Chora Rita.

Cliente – Castiga na Chora Rita ( a Dona do Bar serve a pinga e o Cliente bebe em um gole só ). Repete a dose no capricho. Hoje eu quero afogar a minha mágoa.

Dona do Bar ( servindo outra dose ) – Tá desgostoso da vida, moço? Tem vez que a bebida alivia mas às vezes ela complica mais ainda...

Cliente ( bebendo em um só gole ) – É isso mesmo dona, a vida é uma sinuca de bico. Tem dia que nada que a gente faz dá certo.

Dona do Bar - Não seja pessimista, moço ( servindo outra dose ). Tome outra por conta da casa. Um aperitivo para abrir o apetite.Temos torresminho com farofa, quibe com ovo e lingüiça de tira-gosto. O senhor vai querer?

Cliente – Pinga é bom com lingüiça. Traga uma pimenta também. ( A dona do Bar sai para atender o pedido enquanto o Cliente tira o envelope do bolso e diluí na pinga. Apanha o copo, olha e fala consigo mesmo ). Adeus mundo cruel e infame. Um grande bundão tu vai perder! ( Fica em dúvida. Coloca o copo no balcão e fica contemplando com tristeza profunda. A Dona do Bar aparece com o tira-gosto. Entra o Malandro com um cigarro acesso na boca e se dirige a eles com insolência )

Malandro – Hoje não vi minha nêga e tô com a macaca. Tô doido para apagar o filho duma égua que se meter no meu caminho. Quero ver se nesse boteco fajuto tem um macho que vai querer me encarar. Tô pagando pra ver! ( Pega o copo do Cliente )

Dona do Bar – Deixa o moço beber a pinga dele em paz, Tripa Seca...

Malandro – Já quem manda aqui no pedaço é o Tripa Seca, vou tomar a pinga desse otário de graça. Se chiar eu como na faca ( Apaga o cigarro violentamente no balcão e bebe a pinga em um gole só). Se olhar feio dou um tiro no saco.

Cliente – Pô cara, hoje em dia não se pode nem morrer sossegado...

Dona do Bar – Deixa de besteira, moço. Que conversa é essa de morrer sossegado?

Malandro – Além de otário, o borra bosta quer virar defunto porquê? ( Começa a se coçar e se contorcer disfarsadamente )

Cliente ( meio desapontado ) – Hoje acordei atrasado. O chuveiro queimou. Peguei o ônibus cheio e um engarrafamento de lascar para chegar mais atrasado ainda no trabalho. Meu chefe me olhou com cara de desprezo e disse que eu estava no olho da rua, que para o meu lugar já tinha um monte de puxa-saco. Voltei para casa mais cedo e quando abro a porta do quarto encontro a minha mulher com o Robertão, aquele desgraçado que dizia ser meu amigo. Corno desempregado e sem nenhuma arma para acabar comigo, passei no Armazém Rural e comprei veneno de rato, com a certeza que a vida para mim tinha acabado. Cheguei aqui nesse bar, misturei o veneno com a última pinga que ia beber, certo que daria fim nessa mediocridade toda e para meu desespero aparece um veado metido a valente, dando uma de arruaceiro para beber minha pinga com veneno de rato. Tem dó. Tem dia que nada dá certo...

Dona do Bar – Valei-me, São Expedito, não quero complicação com a polícia...

Malandro ( Tremendo com a mão na barriga ) O quê? Veneno de rato na pinga? Ai meu estômago... tá começando a queimar. Tô no sal...( começa a cair em câmara lenta )

Dona do Bar – Tripa Seca, seu infeliz, porque não arranjaste outro lugar para morrer?

Cliente – Tem dia que nada dá certo. Hoje foi o Tripa Seca que se ferrou. Quem sabe o Senhor lá em cima está me dando outra chance ( Vai saindo de cena enquanto a Dona do Bar e o casal de namorados jogam um lençol sobre o corpo de Tripa Seca. Toca um Bezerra da Silva. A luz vai enfraquecendo ).
José Edson dos Santos
..._..._.._.._.._...

"... Por que os povos amam seus poetas? É por que os povos precisam disso, por que os poetas dizem uma coisa que as pessoas precisam que seja dita. O poeta não é um ser de luxo, ele não é uma excrescência ornamental da sociedade, ele é uma necessidade orgânica de uma sociedade, a sociedade precisa daquilo, daquela loucura pra respirar. É através da loucura dos poetas, através da ruptura que eles representam que a sociedade respira...". Paulo Leminski

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008


Fernando Botero
http://arroli-stezano.uy/gre/botero8,jpg

BOLERO EM NOITE CINZA

José Edson dos Santos

Na noite cinza
um bolero de soleira
notívagos e corações solitários
vestem angústias e divagam
nos labirintos da cidade

A grande putona da megalomania
bebe e bufa fuligens de ócio
Benvenido Granda solfeja nos mictórios

Arcanjos pederastas
ironizam o desenlace da concubina cocainômona
e aguardam ansiosos
mancebos imberbes
para acariciarem o pomo de adão
da solidão cinza
com seus boleros de perfídia
e sordidez

domingo, 17 de fevereiro de 2008



www.fotodobrasil.fot.br/imagens_Amapá.htm

MACAPÁ
Raul Bopp

Macapá molango...
Pia de noite
O murucututú
Ruas escoradas. De chão verde.
Compadre,
esse luar escondidodá uma jurumenha na gente...

Então vamos espiar a fortaleza assombrada:
Tocos de vela num canto de um rancho.
Pai de mandiga tá chamando o mato.
Bocejam os brazeiros.
Em cachimbadas largas
a diamba quebra a nostalgia do sangue.

Uai ore-rê
que o tai-tai tá ahi

As vozes se misturam em tamboreadas seccas:
Zerê tem. Zerê tem. Zerê tem
missa do pando de ore-paco de pagú.

Corra frouxo o tafiá
Ahi ta-fi-á

Biri-birim Biri-birim
Bata-cotô Bata-cotô
Quanndo tu veio eu também
Bata-cotô Bata-cotô

Em redor da fogueira murcha
as negras rengueiam de pé mordido
rebolando o ventre.

Uai ore-rê
que o tai-tai tá ahi

Escorrem vultos longos pelas fóssas da fortaleza
devoradas na sombra.
Então enche-se a noite mole
de uivos de carne mordida, fungando

Toda gente diz que é assombração de lua nova...
...Missa do pango de ore-paco de pagú.

bpO.blogger.com/.../vampiro+dracula.jpg

O VAMPIRO DE RAPUNZEL
ao Jorge Mautner

Essa chuva cinza a noite
molhando o pássaro imprevisível
na sua obsessão de horizontes
sinuosos & na arquitetura de querubim

Alçar entre silabas bilabiais
o que secreta o nariz de Rapunzel
Relâmpagos e nuvens de enxofre
perseguem o Lázaro triste e cego
ruminando a vã filosofia do ego
na chuva cinza
desabando na cidade

Meia-noite e um suspiro
o Vampiro veste seu colete grená
e sai à procura de suspense
surpresa e horror
Rapunzel em sua Torre de Babel
beberica o último gole de Fogo Paulista
desembaraçando as madeixas de menina rica
escuta o sax fogoso
que vem no vento
ensaia a risada de ninfeta ninfômona
e espera displicentemente
pelo Príncipe da Noite

Chove a noite cinza
os querubins se embriagam de veneno
quando o maldito vagueia o solar
_ Rapunzel, Rapunzel joga as transas!
Um papelote de cocaína
cai de seu decote
& o sax solene corta o silêncio

O Vampiro reverencia a chuva
e sobe no elevador do calabouço
levando uvas no pescoço
para curar o quebranto de Rapunzel.

A noite cinza de sussurros
parece um ranger de asas
um conto de Edgar Alan Poe
e quem não tem vinho e nem virtude
se contenta com o vício
de Charles Baudelaire
Les Fleurs du Mal

sábado, 16 de fevereiro de 2008


Releitura de Abaporu e a Negra de Tarsila do Amaral:Ravi Brito

Praia antropofágica

O Abapuru do rito indigesto

fugiu da mata multicultural galeria

levando a Negra dos lábios de açaí

Miscigenaram ao sol do Equador da dor

criando o eterno mito nativo

de ser moderno

enquanto tropicaliente cativo

com a praia antropofágica devorando o dia
José Edson dos Santos

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Bar Beirute


NOITE NO BEIRUTE ( SCLS 109 )

Beira da noite
em Brasília

Faunas
Hordas &
Tribos ecléticas

Paixões etílicas
fofocas políticas
cinema/ música/ teatro
artes e manhas da diversidade
no anedotário e folclore geral
da cidade

Sobre a mesa
pão sírio
quibe cru
vermute e cerveja

A lua bêbada
rodopia no copo
de Ruth da CUT

Ampulheta de Aedo


capa de Ampulheta de Aedo
Ravi Brito

AMPULHETA DE AEDO

O dedo aedo
desclitoriza cedo
medo da noite

Psiquê possessa
fende vestido organdi
confessa volúpia nos dias

Vênus sodomita exaurida
reparte vindima e esperança
outono cinzento em Marte

O cinismo de Narciso
cinzela tarde saudosista
na arte de um velho retratista
Visite http://alcinea-cavalcante.blogspot.com
http://paulotarso.blog.uol.com.br

O Peixe Dourado - Paul Klee

Rio Amazonas Macapá


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O Peixe Dourado

O Peixe Dourado


Mar abissal subaquático
o peixe dourado de Paul Klee
ilumina a cor da poesia submersa
âmago amarelo brânquias
nadadeiras
cauda escarlate
olho vermelho no azul

Luminoso peixe
feixes por entre plânctons
algas selenitas cartilaginosas
nenúfares da penumbra sensitiva
peixinhos encarnados fogem
do mistério que espreita
mundo submarino natatório

Domínio da flor do abismo
quebranto cor-de-sangue
perscrutando grande olho
aragem atlântica da fertilidade
espanto azul no escuro do mar
profundo púrpuro da cor
sob peixe laser que brilha

Sombra obscura azulina-violácea
aquarela aquática watercolor
matizando origem da vida
respira signos e cores análogas

O peixe dourado irradia mistério
Klee reinventa marinho estrelas do mar
sargaços oceânicos do ser
como criaturas da noite das águas
onde dorme um azul acesso e inquieto

Livia

Lívia


Tinha em sua frente a estante de mogno com livros de arte e literatura. Perto da janela que moldurava o firmamento e os dias, a estatueta de uma índia marajoara. Na parede lateral da sala, as plantas sensitivas e uma trepadeira do cerrado. No trapézio improvisado preso ao teto, o periquito que trouxera de Santarém roia caroço de açaí, sujando o piso de cerâmica azul com afrescos art nouveau. No toca disco, ouvia baixinho Ella Fitzgerald, My Melancholy Baby. Lívia dormia serena sobre as almofadas espalhadas pelos cantos. Acendeu seu cigarro vesperal, tragando em espiral o instante. Levou a mão esquerda ao queixo apolíneo, remetendo à nostalgia do tempo em que dançava com Lívia no clube campestre do Leão do Norte. A orquestra tocava os clássicos que faziam os pés-de-valsa a suspirar perto da piscina, e ela sorrindo enigmática como se Ártemis irradiasse o luar. Estrelas cadentes riscavam o céu para caírem no quintal da lembrança. Saudade invadindo o vazio silente do ser.

Levantou da cadeira e foi até a cozinha. Abriu a geladeira na sôfrega vontade de alimentar o seu pantagruelismo momentâneo. Mastigar, engolir ou beber o sólido do possível para dar as calorias necessárias a sua compleição predadora. Escovou os dentes, deixando um pouco do flúor na boca, uma delícia instantânea e fria na língua. Volta à sala e instintivamente vislumbra os seios epicuristas colados na blusa de meia de Lívia. Ela, como uma gata angorá manhosa, se vira em decúbito dorsal. Começa massageá-la com carinho por toda extensão de suas costas, mapeando a coluna cervical, vértebra por vértebra, até atormentá-la no arrepio da nuca que logo se alucina por toda a carne em delírio, como no mito do corpo fatídico, do adorável corpo lascivo de luxúria. Com tesão vai acariciando suas coxas desprevenidas, beijado-as com ardor entre as patelas da vertigem.

Se introduz assim na circunstância do desejo, desenhando a hora alada do corpo em frenesi. Hipocampos nadando em olhos siderais. Sempre buscou os lances dos sentidos nos gestos psicodramáticos, na semiótica corporal da paixão, na magia espontânea da natureza humana com seus ritos cotidianos. Tamborilou os dedos na mesa de mosaico que ganhara de Telma, sua prima paraense por quem nutriu um platonismo recalcado na adolescência. Completamente sodomizado do arrebatamento, retorna em transe à sala onde Lívia resfolegava como uma deusa esplendorosa do Kama Sutra capital. Sente uma vaidade vanguardista por compreender Os Jardins das Delícias, de Hieronimus Bosch. As metamorfoses do olhar no espelho da memória. Janela dos amantes e o mar.

Da rua chega o cheiro das primeiras mangas maduras. Afaga os cabelos ondulados de Lívia com ternura, como se estivesse recriando histórias do inconsciente, mitologias da infância pelo rio Amazonas, narrativas coletadas nos livros de Alexandre Dumas, Lewis Carrol, Jack London, Ernest Hemingway e Ana Maria Machado. Um luar demiurgo se insinua agora. Nem sente comoção dos latidos do perdigueiro Billy vindo da varanda. Violinos ciganos harpejam sua memória atávica, fotografando situações impressionistas e mirabolantes que haviam caído na gaveta do esquecimento. Lembranças do cais em Macapá. Paisagem noturna da Praça da República, em Belém. Cervejas urdidas no calor doloroso de Teresina. O espaço e o céu aberto de Brasília quando candanga. Rios, cachoeiras, florestas. Pessoas intransferíveis do mesmo cogito torquateano da dor.

Jogou paciência com meticulosidade por algum tempo, pensando deixar para depois o abraço do morfeu exaurido, ao lado da languidez de Lívia, para sentir bem de leve a sonolência chegando sem pedir licença. Começa a chover quando imagina elfos e nereides acoplados no The Dark Side of the Moon, com o Pink Floyd. Cria um cenário acrílico onde sonha a noite indolente e seus mergulhos nas profundezas abissais e oceânicas. Quem sabe no outro dia tente retornar à pagina que deixou marcada no Fragmento do Discurso Amoroso. Lívia gosta muito de ler os ensaios de Roland Barthes e dos franceses como Georges Bataille com a sua História do Olho.

Tudo como no caleidoscópio sobre a mesa de mosaico que Telma esquecera depois do jantar. Aquele momento assim mesmo num lago de antúrios. O silêncio se condensa em névoas distorcidas com a invenção de bocejos intermitentes. Música celta com incenso indiano de Lívia no ar. Mar.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

poesia joy

www.pitoresco.com/universal/matisse/matisse.htm -


Zé Edson, Ivan Monteiro e Menezes y Moraes




São José -Macapá/AP
























charge do Zé: Ravi Brito


JOSÉ EDSON DOS SANTOS

Nasceu em Macapá, no estado do Amapá, região amazônica brasileira e mora em Brasília desde 1974. É professor de artes cênicas no CEAN/ASA NORTE. Publicou em 1972 em Macapá, Xarda Misturada com José Montoril e Ray Cunha.Em 1978 participou da antologia organizada por Salomão Sousa, Em Canto Cerrado. Em 1980, publicou Águagonia. Ainda em 1980, Latitude Zero, com edição mimeografada por Paulo Tovar. Bolero em Noite Cinza foi publicado pela Da Anta Casa Editora em 1995. Participou de muitas antologias, inclusiva da célebre 27 Porretas. Alguns poemas desta seleção são inéditos e outros foram editados no Bolero em Noite Cinza e em Ampulheta de Aedo (Brasília: LGE Editora, 2005, com o patrocínio do FAC/SC/DF). Participou também de Todas as Gerações - o conto brasiliense contemporâneo – (Brasília: LGE Editora, 2006), organizada por Ronaldo Cagiano.

“O cultivo de uma postura maldita juntamente com o sestroso elogio à noite e seus personagens à margem das normas, imersos na singular atmosfera urbana brasiliense. Sem dúvida Zé Edson esmera-se em explorar estes temas e este clima.” (Francisco Kaq, Jornal de Brasília)

“Em José Edson dos Santos o poema se aparelha ao entranhamento, como um rouxinol soberbo em roupa inabitual, acamado de poemofilia incurável, noite necessária em pirilampos ébrios: lava-bala-vaga no horizonte lírico, donde o poeta -bacamarte em punhos- manda tiros de poesia ao infinito (Salatiel Ribeiro)

“Com José Edson dos Santos, entrelaçam-se forma e conteúdo na busca da irrupção das diferenças, do fascínio do novo. Assim “tua boca/ de tomate e vodca/ contrasta a tarde metódica/ a invadir a dialética dos sentidos”. E ainda o poema Meu Poetílico Pássaro Pirado Jasmim, que numa catarata de imagens, as mais diversas converte o irreal como único referente concreto. (Marcos Mota, Correio Brasiliense)

“José Edson dos Santos com o seu Bolero em Noite Cinza, traz a emoção da dança e a virtude da luz pelas frestas das portas. É sobretudo uma forma nova de encarar o mundo e de desvirtuar a realidade que tanto sufoca. Um instante de alumbramento. É a tarântula e sua teia saindo para a luz” (Fernando Canto)

“Bolero em Noite Cinza nos fala da modernidade poética, embalada numa estética do oleiro que conhece bem a forma a que pode chegar. Meu Poetílico Pássaro Pirado Jasmim e o Vampiro de Rapunzel são apenas dois exemplos colhidos no pomar da memória para ilustrar o que afirmamos. (Menezes y Moraes)

“Artista de linguagem ágil, capaz de captar a confusão das cidades e os rumores da vida noturna.” (Fernando Marques, Correio Brasiliense)

“Apesar de seu desterramento, o poeta José Edson dos Santos revela a veia telúrica e amazônica, mas em formatos urbanizados de criação. Linguagem célere, quase minimalista, entre o irônico e grotesco, de sua verve dramática e de black humour como em “Poética magra”: “No contracheque/ o sarcasmo do salário/ como mal-me-pague da educação popular/ / O que pode almejar o poeta/ professor ator/mentado do sonho/ pretextando outras manhãs/ com palavras por dizer/ ser um impróprio trocadilho?” (Antonio Miranda)


BAÍA DE MACAPÁ

O rio é uma imensa
boca
circundada de ilhas
barrancos
barcos de partida

O céu é uma imensa
porrada na cabeça

Tu adentras geografias
porfias de aventura

a vida velho
parece um ioiô

sempre arranja um jeito
de voltar ao ponto de partida

Retorno à amplitude
desta baía desde menino

O rio deixa a boca aberta
nesta lembrança sem navio

água louco do destino


SERÁ A BENEDITA?

Bendito
alfazema em tua rua morta

O jambo floresce na alameda
enquanto cão uivo à lua

Cogito
tema que tua janela anteceda
canção da porta sem tramela


NEFELIBATA
Sonheteiro nefelibata na varanda
contemplo nuvens do impalpável

Flibusteiro da fragata argonauta
vejo longarina vida singrando

Timoneiro da tormenta solerte
fito porto da morte de soslaio

Sinaleiro Juno do arrebol ausente
olho mundo como nuvem de maio


PEIXE AO FORNO WALLY SALOMÃO

Pesque pague poeta
um peixe Walter Benjamim
tempere com sal, salsa-merengue
Gabriela Mistral em maio
acrescente Shoio, picardia
páprica ousadia e chicória
antes de levar ao forno
até torná-lo tonitruante
tosco tostadinho com aguardente

Depois de ajeitá-lo no prato
servir no sarau cultural
da bovinocultura acadêmica

A carne perece fraca
mas o peixe continua fresco


SOBRE A COMIDA

Fazer frango com pequi
arroz e jiló

é muito simples
coisinha tenra

é necessário além do zelo
uma pitada de amor e ternura

diz a sabedoria popular
tempero de comida
é a fome


PRESERVAÇÃO DOS QUELÔNIOS

Flor do açaí
quando sol surgir na janela
destampe a panela
prepare tracajá
com tucupi


O PEIXE DOURADO

Mar abissal subaquático
o peixe dourado de Paul Klee
ilumina a cor da poesia submersa
âmago amarelo brânquias
nadadeiras
cauda escarlate
olho vermelho no azul

Luminoso peixe
feixes por entre plânctons
algas selenitas cartilaginosas
nenúfares da penumbra sensitiva
peixinhos encarnados fogem
do mistério que espreita
mundo submarino natatório

Domínio da flor do abismo
quebranto cor-de-sangue
perscrutando grande olho
aragem atlântica da fertilidade
espanto azul no escuro do mar
profundo púrpuro da cor
sob peixe laser que brilha

Sombra obscura azulina-violácea
aquarela aquática watercolor
matizando origem da vida
respira signos e cores análogas

O peixe dourado irradia mistério
Klee reinventa marinho estrelas do mar
sargaços oceânicos do ser
como criaturas da noite das águas
onde dorme um azul acesso e inquieto


O DIA ENQUANTO LÍLIA

Depois da chuva diluviana
no umbigo da uva de outubro
descubro uma cacimba
neste pé d’água
pai d’égua
e um Passarin serelepe
chega sussurrando no ouvido:

- Seje feliz, catita. Coloca teu vestido de chita
e o perfume de alecrim no cangote.
Molha logo todo esse corpo birrento.
Ande. Corra. Traga o pote e o miolo.
Vem fazê cafuné n’óios da noite.
A poesia só surge mermo
quando bate o pé-de-pilão
do dia nascendo Diniz


SOL BARDO

Depois do abacateiro
beliscar teu céu
conjugação dos elementos
siderais do firmamento
a estrela do norte riscou
o silêncio do verso do avesso

Rumor do rio da infância
preamar no olhar caboclo
louca expiação da indolência
engendrando flor de tucumã

Teu cheiro de pupunha no cangote
engasga a boca de saudade
no decote aberto da manhã

Tosca vaidade de vampiro
tatua signo secreto
desmontado no vitral das horas
ao resfolegar de um fagote
sob sol bardo
empapuçado e
enfartante


QUATORZE DE JUNHO

Fogos de artifícios
iluminam a noite
nas mídias dos edifícios

Acende a vela Ivan
na nave dos quarentas
quem ostenta barba por fazer
demora desmemoriar minas

Traça o chocolate inteiro
enquanto a cerveja chora

Se nunca viste um duende
pede alpiste ao Silibrino
ele te ensina o hino
da insensatez
na tez

Na idade dos lobos vorazes
há necessidade de jugulares tenras

Acende a vela e
não sopra
o vento está a favor


DEPOIS DE LER CARLOS NEJAR


Hoje mudei
sou outro mundo
outra aventura
outra ternura
outra vontade
incongruente criatura
vivo mudo outra metade


Então me apresento
redimível
cordato
tênue rosto risível

Áspero ofício de escrever
de ver o outro
o eu no espelho do silêncio
do Narciso feio de outrora

Mudei a latitude
agora observo o mar de Macapá

Mudei de não mudar
no futurível de mim
a mesma casa
a mesma coisa
a mesma mulher

Mutante indeciso
no arrebol da aurora
de mim mesmo
procuro o mar do embora

Outra mudança agora
O rio já não é o mesmo
outro estuário
outra lua
outra porta
barba por fazer
o que importa?


Mudo não digo nada
na madrugada de Macapá
observo o mar que escapa
lavando minhas origens nas águas

Danço o Marabaixo do acaso
mesmo no mato sem cachorro
morro de saudade de Brasília
ao inventar uma ilha de nuvens
neste céu do aqui e agora
outro mundo outra bússola
por entre vinhos e virtudes

O mar concorda com tudo
o vento da mudança também


POETA DO RISO E DA DOR

Cruel o papel de seguir
oráculo negro de Ismael

óculos escuro do sol fingidor
traz o poeta do riso e da dor

samba rock blues bolero
do bardo bêbado de amor

penetram corpo azul da solidão
como fosse pano de Messalina

lua nua do canto profano
espanta os cães da madrugada

a escada do céu está quebrada
certamente o Sérgio
sabe disso como ninguém

o trem que vai ao paraíso
já passou meu amor
alguém perdeu a memória

a história de sambar sozinho
não redime o destino cruel

colocar o bloco na rua
no céu da avenida redemoinho

refaz a marcha e cor do carnaval
do poeta do riso e da dor

menos mal meu amor
coloque os óculos no sol fingidor
vamos embora espantar essa tristeza
nessa mesa das horas agora


ADEUS MESTRE ZEZITO

Mestre Zezito
inventava bonecos
mamulengos malabares

circo popular calango
candanga ludicidade do espanto

ontem foi embora sem pedir licença
à cidade dos cirandeiros dos sonhos


COMPULSÃO

A rádio patroa
não se controla diante
das inclemências
das liquidações de verão


FELAÇÃO DE VIOLINISTA

O calvo toca De Falla
com efeitos de sodomia
para traduzir sua fala mansa
à balzaqueana sestrosa do Guará
sendo instrumento varonil
como garboso trombone de vara
do seu falo alcoviteiro dolorido


CARTOGRAFIA

Macapá no mapa
antropológico
sentimental
equaciona desterro
latitude zero da costela

Na ilha da saudade
tralhotos perscrutam estrelas
noite distante
barco a vela
maré vazante

O mar barrento espuma
mitologias da infância
manhã com catapora
Mapinguari foi logo ali
espantar criança que chora

O bairro nunca teve trem
ruas de chuvas
alagando praça Nossa Senhora da Conceição
beatas com sombrinhas
coroinhas no jejum da procissão

Beirol
Elesbão
Igarapé das Mulheres
Buritizal
Laguinho
Jacaré-a-canga
Pacoval
Lagoa dos Índios
onde fica a poesia da memória do menino
e a árvore da sua história ?

Confissões do pecado no Bar Caboclo
incursões pelo antigo lupanar Merengue
o primeiro cancro mole de boto
nado ao lado do trapiche onde mãe d’água
acalentava mágoa azeviche

Marco no mapa
melodramático Macapá
Latitude Zero do Equador
a saudade escapa absconsa
preamar do barco bacante

A lembrança sumana degredada
constrói arco de uma ponte pai d’égua
afluente de minha visagem olvidada
cartografia de mim mesmo macapaense


NEGRA FLOR (LAGUINHO)

Em mim um sujeito retinto
bebeu ébano da paixão
Ddsejo de se transformar
anum banto distinto

Êta, negra azeviche
teus olhos hipnotizam veleiros
pirilampos nos lusco-fusco de fevereiro
sob luar mambo-jambo no trapiche

A noite riso de saci
acende fogo de curupira
no escuro do muro
breu
breu
o tesão suspira calamares
bebendo licor de açaí
que destila o Laguinho palmares

Promete uma coisa, flor de miriti?
Deixa carapinha assim insinuante
no estreito leito do igarapé em Macapá
canta órfico marabaixo ofegante

Saudade não bebe água benta de zumbi
nem tampouco transporta chamego
portos mundanos que passo sem ti

Somente negra flor na lapela da estrada
O resto escafedeu-se no breu das ruas
Onde a lua espia silêncio da madrugada

Cala boca!
Já morreu...









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